Saturday, June 29, 2013

Dentes de uma engrenagem

 Pedro J. Bondaczuk
  
O papa João Paulo II expressou, na encíclica “Sollicitudo Rei Socialis”, divulgada ontem, uma verdade que todos nós já tivemos a oportunidade de verificar, mas que muitos teimam em não querer ver: a de que os dois sistemas ideológicos que dividem o mundo entre si faliram no seu principal objetivo, que é o de promover a justiça e a harmonia entre os povos.

Ambos não passam de verso e reverso de uma mesma moeda. Os confrontos que os dois blocos sustentam, por outro lado, são o principal responsável pela miséria da maior parte da humanidade e que se acentua a cada dia, fazendo parecer que o Planeta é povoado por duas “espécies” diferentes de seres humanos. Uma teria direito a todos os privilégios e a nenhuma obrigação. À outra restariam somente os deveres, sem a devida recíproca.

Nenhuma parte do mundo sofreu, ou sofre mais com isso do que a América Latina, que há tempos só faz andar para trás, prenunciando um futuro trágico para seus infelizes habitantes. A área foi dotada pela natureza das maiores riquezas que se possa imaginar.

Seu subsolo generoso abrigou, há tempos, ouro, prata, cobre, estanho e outros metais preciosos em profusão. Lençóis petrolíferos extensos poderiam garantir tranqüilidade energética por milênios para a região. Suas terras úberes se prestam a todo o tipo de cultura que se deseje.

No entanto, aos invés dessas dádivas servirem para a prosperidade e felicidade latino-americanas, acabaram sendo instrumentos de sua servidão, indo parar em mãos alheias. A nós restaram, como sempre, apenas os ônus.

Eduardo Galeano observou: “Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializaram-se em ganhar e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta”.

O Papa falou, em sua encíclica, de um “sofisticado” tipo de neocolonialismo. Este caracteriza-se pela dominação econômica, que impõe no seu caudal compromissos políticos que transformaram o conceito de soberania em mera ficção. É este que há por aqui. O ex-presidente norte-americano. Woodrow Wilson, já observava, no início deste século: “Um país é possuído e dominado pelo capital que nele se tenha investido”.

Pior é quando os recursos que possibilitaram esse investimento saíram dele mesmo. Quando se originaram do ouro do Peru, do México e do Brasil; da prata da Bolívia, do cobre do Chile e da borracha brasileira. Quando não do preço vil pago por nossas matérias-primas vegetais (nem sempre as culturas mais apropriadas e que satisfazem os nossos interesses).

E essas riquezas, drenadas para os cofres alheios, voltaram para nossos países em forma de empréstimos, num surrealista processo multiplicador. Não podemos ser eternamente meros “dentes de uma gigantesca engrenagem”. Pois é o que somos!

(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 20 de fevereiro de 1988).


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