Dentes de uma engrenagem
O
papa João Paulo II expressou, na encíclica “Sollicitudo Rei Socialis”,
divulgada ontem, uma verdade que todos nós já tivemos a oportunidade de
verificar, mas que muitos teimam em não querer ver: a de que os dois sistemas
ideológicos que dividem o mundo entre si faliram no seu principal objetivo, que
é o de promover a justiça e a harmonia entre os povos.
Ambos não passam de verso e reverso de uma mesma
moeda. Os confrontos que os dois blocos sustentam, por outro lado, são o
principal responsável pela miséria da maior parte da humanidade e que se
acentua a cada dia, fazendo parecer que o Planeta é povoado por duas “espécies”
diferentes de seres humanos. Uma teria direito a todos os privilégios e a
nenhuma obrigação. À outra restariam somente os deveres, sem a devida
recíproca.
Nenhuma parte do mundo sofreu, ou sofre mais com
isso do que a América Latina, que há tempos só faz andar para trás,
prenunciando um futuro trágico para seus infelizes habitantes. A área foi
dotada pela natureza das maiores riquezas que se possa imaginar.
Seu subsolo generoso abrigou, há tempos, ouro,
prata, cobre, estanho e outros metais preciosos em profusão. Lençóis
petrolíferos extensos poderiam garantir tranqüilidade energética por milênios
para a região. Suas terras úberes se prestam a todo o tipo de cultura que se
deseje.
No entanto, aos invés dessas dádivas servirem para a
prosperidade e felicidade latino-americanas, acabaram sendo instrumentos de sua
servidão, indo parar em mãos alheias. A nós restaram, como sempre, apenas os
ônus.
Eduardo Galeano observou: “Há dois lados na divisão
internacional do trabalho: um em que alguns países especializaram-se em ganhar
e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje
chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os
remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e
fincaram os dentes em sua garganta”.
O Papa falou, em sua encíclica, de um “sofisticado”
tipo de neocolonialismo. Este caracteriza-se pela dominação econômica, que
impõe no seu caudal compromissos políticos que transformaram o conceito de
soberania em mera ficção. É este que há por aqui. O ex-presidente
norte-americano. Woodrow Wilson, já observava, no início deste século: “Um país
é possuído e dominado pelo capital que nele se tenha investido”.
Pior é quando os recursos que possibilitaram esse
investimento saíram dele mesmo. Quando se originaram do ouro do Peru, do México
e do Brasil; da prata da Bolívia, do cobre do Chile e da borracha brasileira.
Quando não do preço vil pago por nossas matérias-primas vegetais (nem sempre as
culturas mais apropriadas e que satisfazem os nossos interesses).
E essas riquezas, drenadas para os cofres alheios,
voltaram para nossos países em forma de empréstimos, num surrealista processo
multiplicador. Não podemos ser eternamente meros “dentes de uma gigantesca
engrenagem”. Pois é o que somos!
(Artigo
publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 20 de fevereiro
de 1988).
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