Friday, June 07, 2013

Filósofo da História

Pedro J. Bondaczuk

Os “rótulos”, quer aplicados a pessoas, quer a organizações, atividades etc., por mais precisos que pareçam, nem sempre (ou quase nunca) caracterizam com exatidão quem ou o que pretendemos caracterizar. É melhor que não os usemos. É o caso específico de Arnold Joseph Toynbee (e não é mero capricho citar seu segundo nome, já que ele o distingue de seu ilustre tio, homônimo, um dos grandes economistas ingleses do século XIX). Sempre que mencionado, é caracterizado como “historiador”. Sem nenhum demérito a esses “repórteres do passado”, não é correto, porém, caracterizar Toynbee dessa maneira.

Caso a utilização de algum “rótulo” fosse necessária no seu caso (entendo que não é), eu o classificaria como “Filósofo da História”. Mesmo que não rigorosamente exato, é o que mais se aproxima do que ele de fato foi. Sua mãe – mulher cultíssima e em uma época em que o papel feminino restringia-se à geração e criação dos filhos e à administração do lar – sim era historiadora e das mais lúcidas e brilhantes. Toynbee, em nenhum de seus livros, limitou-se à narrativa histórica. Aliás, inúmeras vezes declarou que isso era uma atividade trivial, desimportante, de pouco significado. Chamava esse procedimento de “industrialização da História”.

O que se propôs a fazer, e fez, foi estudar a gênese, o desenvolvimento, estagnação (em alguns casos), evolução, decadência e extinção das várias civilizações (identificou 21, das quais quatro, no seu entender, permanecem “imobilizadas”) buscando chegar às causas e determinar as conseqüências de todo esse processo. E isso não é “fazer” História, no sentido usual, mas estudá-la, esmiuçá-la, detalhá-la e analisá-la sob um ponto de vista que considero “científico”. Portanto, o rótulo que lhe apõem, o de historiador, embora não o desmereça em nada, é rigorosamente incorreto.

Toynbee nomeou, à sua maneira, as 21 civilizações que detectou da seguinte forma: a ocidental, duas cristãs-ortodoxas (na Rússia e no Oriente Próximo), a irânica, a sínica, a árabe, a hindu, duas do Extremo Oriente, a helênica, a siríaca, a índica, a minóica, a sumérica, a hitita, a babilônica, a andina, a mexicana, a iucateca, a maia e a egipcíaca. E as quatro que entendia estarem imobilizadas, ou seja, estagnadas e prestes a desaparecer: a esquimó, a nomádica, a otomana e a espartana. Os nomes que o ilustre intelectual deu a essas civilizações é um tanto pitoresco e foge, como se vê, dos padrões usuais.

Outro rótulo aposto a Toynbee, do qual também discordo, é o da sua caracterização política. Ele é identificado pela maioria dos que analisam seu pensamento, exposto em sua vasta obra, como conservador, ou seja, como sendo de direita. Embora muitas de suas idéias e ações nos induzam a classificá-lo com tal, outras tantas diferem, e muito, desse figurino e chegam a ser até revolucionárias. Voltaire Schilling enfatiza, na análise que fez a propósito no site Educaterra (HTTP://educaterra.terra.com.br) que ele “foi uma exceção no século XX. Alguém que remou contra as ondas da sua época”. Concordo plenamente com essa conclusão.

Schilling lembrou que Simone de Beauvoir o colocou com destaque em seu livro “O pensamento de Direita, hoje” como expoente do conservadorismo. Discordo, todavia, da colocação da escritora, que aliás admiro, mas que neste caso específico, a meu ver, se equivocou. Outro aspecto enfatizado por Schilling e que também pude constatar é o da forma literária (e de Literatura de primeira) com que Toynbee explanou suas complexas idéias, de sorte a torná-las acessíveis ao leigo razoavelmente informado.

Seu estilo de narração é de dar inveja aos mais festejados e consagrados ficcionistas, prendendo a atenção do leitor em temas teoricamente áridos, insípidos e pouco atrativos. Aliou a esse talento narrativo uma erudição poucas vezes igualada por qualquer intelectual, principalmente de filósofos, habituados a esbanjar e abusar de jargões característicos da disciplina, ao alcance, apenas, de um punhado de iniciados.

Muitos, com base em suas previsões (na verdade, são conclusões) sobre a decadência da civilização ocidental consideram-no pessimista. Ledo engano. Toynbee nunca deixou de acreditar na racionalidade humana e na eficácia da ciência. Entendo que nesse aspecto (e olhem que sou tido e havido como incorrigível otimista), sua visão é até um tanto romântica, num clato paradoxo com a objetividade que mostra em seu “A Study in History”.

No Globo Repórter de 1° de janeiro de 1974, que citei em textos anteriores, ele explicitou, por exemplo, como a humanidade pode se livrar do que ele entendia (e eu também entendo) como seu principal problema: “O homem poderá descobrir uma saída desta armadilha de violência em que caiu só com uma mudança em seu coração. Só através do que eu chamaria de uma revolução religiosa, no verdadeiro sentido da palavra. Só desistindo dos objetivos da sociedade industrial, que começou na Grã-Bretanha, e trocando-os pelos de São Francisco de Assis, que foram estabelecidos há setecentos anos”.

Na sequência, explicou no que consistiria essa “troca”: “Há uma coisa, hoje, na América, chamada de ‘boa vida’, o que significa uma existência material luxuosa, comodista, opulenta. Isso é o que São Francisco de Assis recusou, porque ele temia pelo Ocidente, com grande antevisão. Esta era uma idéia do seu pai, que foi um dos primeiros atacadistas de roupas e fez fortuna. Nós precisamos voltar a São Francisco. E isso será extremamente difícil para o mundo ocidental contemporâneo e para os ocidentalizados, como os soviéticos e japoneses, porque nós estamos no extremo oposto. É por isso que imagino que a transição será extremamente dolorosa. E nós nem sabemos se seremos capazes de conseguir isso, sem que haja um desastre completo”. Como se vê, é uma lúcida e coerente análise de um magnífico filósofo da História.


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