Estopins da ira nacional
Pedro J. Bondaczuk
O País está convulsionado
por uma série de manifestações de protesto que já atingem dezenas de cidades e
que tendem a se ampliar não se sabe quanto. Claro, não se trata de uma
informação da minha parte, não é nenhum furo jornalístico meu, porquanto até o
mais alienado dos alienados sabe o que está ocorrendo, e onde, embora não saiba
no que isso vai resultar.
A onda, de ira, que já é
nacional, e que cresce à medida que os dias passam, começou em São Paulo, com um
punhado não tão expressivo de manifestantes, como é do conhecimento geral,
inicialmente a pretexto de protestar contra o aumento de R$ 0,20 nas passagens
de ônibus urbanos. A dura repressão policial, o que denota despreparo de quem
deveria estar preparado para tudo na sua sagrada missão de proteger (e não
atacar) o cidadão, sobretudo para lidar com multidões (o que todos já sabiam em
decorrência da forma como torcedores de futebol são costumeiramente tratados
nos estádios) acirrou os ânimos. As informações sobre esses desmandos e essa
violência correram o Brasil (e o Exterior) com a velocidade do pensamento,
através da internet, sobretudo das redes sociais, mormente do Facebook e do
Twitter.
À indignação inicial,
justa, mas moderada, veio juntar-se mais esta, ou seja, a da forma brutal e
desumana de se coibir um direito legítimo e inalienável do cidadão: o de expressar seu descontentamento, desde que
de forma pacífica, com liberdade e segurança. As duas coisas lhe foram
sonegadas. Foi a gota d’água para que o cálice de justa indignação reprimida
por décadas em relação a uma série de desmandos, de arbitrariedades e até de
comportamentos criminosos de determinados políticos sem a cabível punição
transbordasse. E deu no que deu. Ou melhor, está dando no que está dando, pois
ninguém sabe quando e muito menos como tudo isso irá acabar. Tomara que tudo
acabe da melhor maneira possível, com o lançamento das bases de profunda
reforma política e administrativa que resulte num Brasil melhor e mais justo,
em que TODOS tenham vez e voz.
Convocada pelas redes
sociais, a população (ou parcela dela, claro, pois muitos, por uma razão ou
outra, que deve ser respeitada, optaram por serem somente “observadores”)
atendeu e segue atendendo à convocação e foi (e está indo) para as ruas para se
manifestar. Não para comemorar eventuais vitórias da Seleção Brasileira na Copa
das Confederações (que nem se sabe se vão acontecer ou não), como determinada
propaganda insinua que deva ocorrer agora e, sobretudo, em 2014, mas para manifestar,
de viva voz, sem intermediários, sua profunda indignação. Com o que? Com uma
saúde que nada tem de saudável. Com um sistema educacional dos mais precários e
piores do mundo. Com uma segurança pública que de tão ruim é como se nem
existisse. E vai por aí afora.
Enquanto isso, alguns
bilhões de escassos e preciosos recursos públicos são esbanjados em suntuosos
(e inúteis) estádios, a maioria dos quais irá, com absoluta certeza, se
transformar em patéticos “elefantes brancos”, sem serventia para quem os
bancou, ou seja, sem trazerem mínima vantagem aos que arcam, mediante impostos
escorchantes, com esse desperdício, com essa desenfreada e estúpida gastança: o
cidadão brasileiro.
Muita coisa poderia ser
dita e escrita a propósito de tudo o que está ocorrendo Brasil afora, mas não o
farei. Certamente, estas manifestações e as mazelas que as provocaram, serão
objetos de estudo, por muitos anos, de sociólogos, cientistas políticos,
antropólogos, historiadores e até filósofos. Reitero, ainda não se sabe e sequer
é possível fazer a mais remota previsão de quando e, sobretudo, de como tudo
isso vai acabar. Tenho medo de multidões. Sempre há riscos delas se tornarem
incontroláveis, violentas e destrutivas. E se isso acontecer (Deus que nos
livre!) não há força no mundo que consiga já não digo controlá-la, pois ela é
incontrolável, mas detê-la.para impedir que leve de roldão, em poucos minutos,
o que se levou anos para se construir, com muito suor e sacrifício.
E o que tudo isso – as
manifestações e suas causas e conseqüências – tem a ver com Literatura? Tem
tudo. Nós, escritores, temos o papel de sermos os cronistas do nosso tempo,
relatando (e delatando, quando for o caso) tudo o que houver de bom e de ruim
em nossa geração. Nossa influência é infinitamente maior do que eventualmente
possamos supor, porquanto é atemporal e pode perdurar até séculos após nossa
morte. E a responsabilidade que temos é da mesma proporção, se não mais
gigantesca. Determinadas colocações nossas tendem a influenciar milhões e
milhões de pessoas, para o bem ou para o mal.
Contudo, não podemos e não
devemos nos omitir, seja por qual razão for. Ademais, antes de sermos
escritores, somos cidadãos, sujeitos às mesmas agruras e, sem dúvida, à
idêntica revolta dos demais. Temos, porém, um talento especial, o de enxergar
além das aparências e de descrever com precisão o que testemunhamos e,
sobretudo, o que vivemos. Nossa matéria-prima, mesmo que façamos ficção, é
sempre a realidade, com sua crueza e contradições.
O escritor russo, Máximo
Gorki, por exemplo, escreveu um magistral conto, “A Mãe”, em que narra a
história de uma criança paralítica, incapaz de se defender, que tem várias
partes de seu corpo comidas por ratos. Os roedores produzem-lhe chagas enormes
que sua mãe, imatura e irresponsável, não pode ou não quer evitar. É uma
história arrepiante! É exagero do escritor? Claro que não! Muitos casos
semelhantes ocorreram e ocorrem mundo afora, na Rússia, na China, nos EUA e no
Brasil. Fedor Dostoiéwsky constatou que “a realidade sempre supera a ficção” em
termos de crueza e dramaticidade. E supera mesmo! Algumas situações no Brasil
contemporâneo, em pleno terceiro milênio da Era Cristã, num país que é detentor
da sexta maior economia do mundo, são tão insólitas, que nem o mais criativo dos
dramaturgos ou o mais cruel dos sádicos conseguiria elaborar.
São famílias morando em
improvisados e insalubres barracos, pendurados em morros, à mercê dos elementos
e do acaso, sem conforto, higiene, segurança e dignidade, enquanto bilhões são
desperdiçados em futuros “elefantes brancos” que apenas servirão para abrigar
três jogos e nada mais. São cidades e mais cidades carentes de um mínimo de
infraestrutura sanitária, sem redes de esgoto, fundamentais para se evitar
doenças típicas da miséria, enquanto preciosos e escassos recursos públicos vão
parar no bolso de “espertalhões”, em obras nitidamente superfaturadas (e nem é
preciso ser especialista em economia para se chegar a essa conclusão). São
tantas e tantas mazelas que se torna impossível relacionar sequer as
principais.
Este é o estopim verdadeiro
que tem levado tanta gente às ruas para protestar, País afora. Não são os R$
0,20 a mais nas passagens de ônibus urbanos, quantia irrisória para quem tem
muito, mas que é relevante para quem pouco ou nada tem. É isso também e,
principalmente, é a forma desrespeitosa e atrabiliária com que o sofrido e via
de regra pacífico cidadão brasileiro é tratado por quem tem a missão exclusiva
e específica de protegê-lo. E, notadamente, por quem vive em um país da
fantasia, totalmente diferente do real,, que lembra o “das maravilhas” da
Alice, a célebre personagem de Lewis Caroll e não o das favelas, mocambos,
alagados e vão por aí afora de parcela majoritária da população.
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