Pedro J. Bondaczuk
A literatura russa é uma das mais refinadas, criativas, vigorosas e importantes do mundo, com um conjunto de escritores de primeiríssima linha, diria que “imortais” – do único tipo de imortalidade possível a esse frágil, efêmero e arrogante animal pensante, que é o homem. Suas obras têm que constar de qualquer boa biblioteca que se preze e ser do conhecimento de leitores minimamente informados e de gosto refinado. Até aí, estou chovendo no molhado, não é mesmo?. Não afirmo nada de novo, que vocês não conheçam de sobejo.
Sequer preciso mencionar os escritores russos mais famosos e admirados, o que seria até redundante. Apenas a título de lembrança, porém, menciono um Fedor Dostoievski, um Leon Tolstoi, um Nicolai Gogol, um Alexandr Pushkin e vai por aí afora, todos, por coincidência (coincidência?!), do século XIX, de tantos e tantos e tantos mestres da poesia, do conto, da novela e do romance que a Rússia produziu e, certamente, segue produzindo.
Todavia, há todo um período da sua literatura em que as belas letras desse povo tão sensível (diria, visceral) sofreram um hiato, talvez (provavelmente) não de qualidade na produção (é difícil de se saber, embora muitos jurem que houve sensível decadência nessa época), mas de divulgação fora das suas fronteiras. É o que marcou as quase oito décadas da era soviética. Poucos livros de escritores desse período chegaram até nós, traduzidos para o português. E os que chegaram, foram traduções de traduções de traduções, o que os descaracterizou com certeza e, além disso, já vieram acompanhados de ressalvas, de que se tratava de “propaganda ideológica”, mesmo que não o fosse.
Não se esqueçam que, do final da Segunda Guerra Mundial, até 1991, quando da extinção da União Soviética, o mundo conheceu um conflito sem quartel, entre Ocidente e Oriente, conhecido como “Guerra Fria”, que apenas por milagre não chegou a esquentar, a ferver e a redundar na Terceira Guerra Mundial que, certamente, seria catastrófica e provavelmente definitiva. As “batalhas” mais ferozes, entre as duas partes em conflito, deram-se, certamente, no nebuloso terreno da propaganda. E dos dois lados, com cada um “pintando” o adversário (na verdade inimigo) com cores sombrias, não raro exageradas, quase sempre distorcidas, como se fosse o inferno. Claro que ambos extrapolaram. O quanto de verdade havia nas respectivas acusações. Temo que nada, ou quase nada.
Finda a Guerra Fria, no entanto, como distinguir a verdade da simples propaganda? A literatura russa entrou, mesmo, em decadência nesse período, como ainda se apregoa tão insistentemente?. Como “instituição”, provavelmente sim. Os russos, porém, todos eles, sofreram crise profunda de criatividade e transformaram seus poemas, novelas, romances etc. em meros instrumentos de difamação do inimigo e de glorificação do regime a que serviam? Alguns, sim, mas generalizar... Voltamos à célebre afirmação de Nelson Rodrigues de que toda generalização é burra. E como é!
Há que se distinguir, desse período, os autores ligados à União dos Escritores Soviéticos, uma espécie de órgão oficial do regime, dos que não se ligavam a essa e a nenhuma outra entidade e escreviam sem sequer terem a preocupação de publicar suas obras. Muitos optaram em partir para o exílio e continuaram suas carreiras no exterior, produzindo farta e qualitativamente.
Sabem quantos escritores russos ganharam o Prêmio Nobel de Literatura durante a vigência da URSS, em que supostamente suas letras atravessavam “crise” de qualidade? Não sabem? Foram cinco! Conquistaram-no: Ivan Alekseyevich Bunion (1933), Bóris Pasternak (1958), Mikhail Aleksandrovich Sholokhov (1965), Aleksandr Isaevich Solzhenitsyn (1970) e Josep Brodski (1987). Sabem quantos haviam sido premiados, desde 1901, quando essa honraria foi instituída com o legado de Alfred Nobel, o inventor da dinamite, até 1933? Nenhum!!! Rigorosa e definitivamente nenhum!
Agora, respondam-me honestamente: Este é o perfil de uma literatura em crise? Não me parece. Sei que muitos irão argumentar que a quase totalidade desses escritores premiados eram dissidentes do regime e que foram lembrados por essa razão. Será? Foi só por isso?! E, mesmo que fosse “também” por tal razão, deixaram de ser russos? Deixaram de abordar a realidade do seu povo e a forma dele reagir às circunstâncias de vida? Claro que não. Ademais, quem pode afirmar que os escritores cujos livros nunca chegaram ao Ocidente (muitos sequer foram editados de forma, digamos, “clássica”, na própria URSS, mas foram apenas mimeografados e distribuídos em pequeníssimas tiragens) não se consagrariam, caso lhes fosse possibilitada a tão necessária visibilidade?
Mesmo acerca de muitos dos ostensivamente comprometidos com o regime soviético não se pode lhes negar qualidade nas suas produções. Exemplo? Máximo Gorki. Alguém, em sã consciência e com conhecimento de causa, pode afirmar, sem incorrer em ridículo, que foi mau escritor? Claro que não. Podem ser mencionados, entre milhares de outros – alguns conhecidos no Ocidente e outros tantos, na verdade a maioria, completamente desconhecidos – nomes como Alexei Surkov, Konstantin Simonov, Bóris Polevói e Vera Panova. Ou como Vera Inber e Olga Bergolts, que sobreviveram ao cerco nazista de Leningrado e descreveram os 900 heróicos (e trágicos) dias desse sítio militar em memorável novela. Ou como Aleksandr Tvardovski, Andrei Platonov, Anna Akhmatova e Illia Erenburg. Ou como Valentin Katayev, Aleksandr Fadeyev, Leonid Leonov e Yuri Guerman. Ou... poderia desfiar outros milhares de nomes, com os respectivos livros, muitos dos quais hoje disponíveis em espanhol e em inglês até mesmo em sebos.
Da minha parte concluo que, em “batalhas” de propaganda, como as que se verificaram no longo período da Guerra Fria, uma das principais vítimas é, sem dúvida, a verdade histórica. O que há de verdadeiro no que cada lado escreveu e propalou sobre o outro, ambos se detratando? Será possível algum dia apurar o que era fato e o que era mera versão (naturalmente distorcida)? Temo que não. Cabe às editoras publicarem obras de escritores russos do período soviético, para que o leitor julgue por si se eram bons ou se suas penas estavam “somente” a serviço do regime, exaltando o que milhões detratavam. Em situações como a que se verificou ao longo da Guerra Fria, portanto, a maior vítima acaba por ser a cultura. Ou não?!
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