Pedro J. Bondaczuk
O ideal (diria que a atitude sensata e prudente) ao escritor é que não misture atividade política de nenhuma natureza com literatura. Quase nunca isso dá certo. Como político, por exemplo, é inevitável que, quando em ascensão, “pise em calos”, descontente a muitos e que, na “descida” (e essa, inevitavelmente ocorre), tenha que pagar essa “fatura”. Raros não têm.
Muitos talentos promissores se perderam por causa dessa militância e do oportunismo com que a exerceram. Não quero com isso afirmar que, pelo fato de ser escritor, o sujeito deva abandonar sua condição de cidadão, suas convicções e suas verdades. Não se trata disso. Só não concordo que use a literatura para fins políticos. Isso nunca dá certo. Pior quando o escritor serve a um regime tirânico e sanguinário, uma dessas ditaduras cruéis que desgraçam povos e que, quando derrubadas, inspiram sentimentos de ódio eterno e de ânsia de vingança.
Alguns não somente apóiam determinados ditadores, mas tornam-se seus aliados, e mais que isso, seus sequazes, seus cúmplices e até seus instrumentos de tirania. Valem-se do poder que detêm para prender companheiros, para torturá-los, para exilá-los e até para executá-los em casos extremos. Mesmo que não cheguem a tanto, não raro interrompem carreiras e mudam destinos, apenas por questões ideológicas.
Pensam que ficarão impunes, mas estão enganados. Nunca ficam. Um dia, quando menos esperam, o ditador é deposto, um novo regime é instalado, todos os que foram aliados ou cúmplices da ditadura são julgados e finalmente acabam punidos. E então... Babau carreira promissora! Adeus vocação! São execrados por todos, ficam marcados e seus possíveis méritos literários são rigorosamente esquecidos e ignorados. Permanecem, apenas, na memória das pessoas, os crimes políticos que cometeram. É o que me parece ter ocorrido com Aleksandr Fadeyev.
Lendo seus livros – traduzidos para o inglês e o espanhol – abstraindo sua militância política e principalmente seu comprometimento ideológico (melhor ainda, sem sequer conhecê-los), não há como negar seu vigoroso talento, seu poder descritivo, sua criação de personagens marcantes e verossímeis. No entanto, ele é hoje execrado, principalmente na Rússia e na Ucrânia (sua terra natal), de onde sua obra foi literalmente banida. E esse nem foi o preço mais alto que teve que pagar por sua equivocada conduta.
Aleksandr Fadeyev nasceu na cidade ucraniana de Kimry, em 24 de dezembro de 1901. Filho de um professor e de uma enfermeira, não chegou a se formar na universidade. Abandonou os estudos, em 1919, antes dos exames finais, para se juntar aos revolucionários bolcheviques, que recém haviam tomado o poder, com a deposição e execução do czar (toda a família do monarca deposto foi executada). Juntou-se, na sequência, ao Exército Vermelho como voluntário, foi ferido em combate e cresceu na hierarquia do Partido Comunista. Publicou, em 1927, aos 26 anos de idade, seu primeiro livro, “A derrota”, mais tarde republicado sob o título de “O dezenove”, em que descreve a vida e o comportamento de jovens guerrilheiros. A história baseia-se em suas experiências pessoais na guerrilha. Foi grande sucesso na União Soviética de então.
Seu livro seguinte, sua obra mais importante, transposta anos mais tarde para o cinema, seria publicado, apenas, 18 anos depois, em 1945. Seu título é “Jovem Guarda”, novela baseada em fatos reais da Segunda Guerra Mundial. O filme originado dessa história pode, inclusive, ser encontrado em várias vídeolocadoras e em alguns sites, dos quais pode ser facilmente baixado. Quem leu o livro ou quem assistiu à película é unânime em elogiar o autor. Ficasse, pois, restrito à atividade de escritor, certamente seria um sujeito conhecido (e reconhecido) por seus méritos literários e não ficaria marcado como é atualmente, ou seja, como alguém que perseguiu companheiros e cometeu vários crimes hediondos, covardes e imperdoáveis;
Aleksandr Fadeyev foi co-fundador da União de Escritores Soviéticos, entidade que presidiu de 1946 a 1954. Foi nessa função que se excedeu, cometeu toda sorte de irregularidades e injustiças, movido por um fanatismo ideológico levado ao paroxismo. Cerceou as carreiras de brilhantes e promissores escritores, foi o responsável pelo exílio de tantos outros, pelo confinamento em sanatórios de doentes mentais de alguns, pelo desterro para campos de trabalhos forçados de outros tantos e assim por diante. Tornou-se, em suma, figura execrada pelos dissidentes e opositores do regime (e, veladamente, até por declarados aliados). A ele, porém, isso pouco (na verdade nada) importava. Afinal, caíra nas graças do ditador Josep Stalin, de triste memória para o povo soviético, que chegou a proclamá-lo como “o maior humanista do mundo”. Grande humanista! Não era, óbvio, o que seus colegas escritores pensavam dele.
Afinal, Fadeyev teve participação ativa (ativíssima) na campanha movida na União Soviética do pós-guerra de expurgo de escritores dissidentes do regime. E não só no campo da literatura. Foi entusiástico promotor da Doutrina Zhdanov, campanha de crítica e perseguição a muitos dos principais compositores musicais do país. Semeou, portanto, inimizades e rancores por onde passou. Mas... estava na crista da onda. Era o “queridinho” de Stalin e casado com a famosa atriz soviética, Angelina Stepanova. Nadava de braçada no sucesso e na fama.
Porém (sempre há um porém), quando menos esperava, tudo mudou. Em 1953, o ditador, seu protetor, morreu. Um ano depois, Fadeyev foi substituído na presidência da União de Escritores Soviéticos por um ferrenho opositor. A esta altura, já se tornara alcoólatra. E em decorrência do alcoolismo, passou a sofrer de graves problemas renais. Censurado pelo novo homem forte da URSS, Nikita Kruschev, viu-se às voltas com severa depressão. Sua vida tornou-se um inferno. Não conseguia concluir mais livro algum. Deixou, aliás, vários deles inacabados.
O desfecho da sua tragédia pessoal, urdido por ele mesmo pelo mau uso que fez do poder que antes dispôs, não tardaria a ocorrer. No transcurso do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviéticas, em 1956, Nikita Krushev denunciou, clara, aberta, nua e cruamente, os crimes e atrocidades cometidos na longa ditadura de Josep Stalin. Foi demais paras Aleksandr Fadeyev, que tinha na figura do truculento ditador uma espécie de deus, a quem venerava. Suicidou-se com um tiro de espingarda, em sua dacha (casa de campo) em Peredelkino, em 13 de maio de 1956. E atentou contra a própria vida pouco depois de ouvir o discurso de Kruschev pelo rádio, o que nos leva a concluir que esta foi a gota d’água que o levou a esse ato tresloucado e extremo.
Observe-se que Fadeyev não se matou porque não soubesse dos horrores do stalinismo e tenha ficado chocado com as revelações. Sabia, sem dúvida. E não só tinha conhecimento, como era cúmplice e até executor de vários desses delitos e atrocidades. Suicidou-se por estar desiludido com os rumos que o Partido Comunista tomara após a morte de Stalin. Ou seja, não se arrependeu dos erros nem mesmo nesse momento extremo. Isso ficou claro no bilhete de despedida que deixou (retido pela KGB por 34 anos e divulgado, somente, em 1990, na era da perestroika e da glasnost de Mikhail Gorbachev).
Diz: “É impossível para mim viver longe da minha arte, à qual tenho dado minha vida, que vem sendo destruída pelo ignorante e arrogante comando do Partido. E este mal não pode ser remediado. Aumentei o número de expoentes da literatura no país, numa quantidade que os sátrapas czaristas nem poderiam sonhar. Agora, eles vêm sendo exterminados, ou têm morrido sob o olhar condescendente e criminoso dos que ostentam o poder. É intolerável”. Ou seja, atribuiu aos adversários os crimes que na verdade cometeu. Triste fim de quem tinha asas, mas não sabia voar.
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1 comment:
Muito oportuno esse texto sobre Fadeyev, meu caro, e que apreciei por demas. Menciono-o em meu livro A Passagem dos Cometas, como você teve a oportunidade de averiguar. Embora em breve narrativa, onde enalteço sua derrocada política e consequentemente seu trágico fim.
Agradeço por esmiuçar, detidamente, a vida e obra de Fadeyev.
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