Pedro J. Bondaczuk
A falência do comunismo no Leste europeu e, mais especificamente, no primeiro lugar em que ele fincou raízes, a União Soviética, é um tema que, mesmo transcorridos vinte anos, ainda por muito tempo irá merecer análises de toda a sorte e interpretações as mais diversas. Muitos precipitaram-se e comemoraram, como se fosse “vitória da humanidade”, essa derrocada.
Houve quem, como Francis Fukuyama, decretasse o “fim da História”, ou seja, o término do confronto de duas ideologias poderosas e antagônicas, com a suposta prevalência de uma delas, no caso o Capitalismo. Mas, ele venceu, de fato? Ou passa por uma agonia mais lenta e tende, igualmente, a ruir? É o sistema ideal para regular as relações internacionais? Não, não e não. Qualquer pessoa, minimamente politizada, sabe que não. O tão propalado consenso, em torno da preponderância do mercado, alçado por alguns caolhos dogmáticos à condição quase que de divindade, não se deu e, dadas as contradições que enseja, ouso dizer, jamais se dará.
Em suma, a História, como sempre a conhecemos – com sua sucessão de perversidades, injustiças, horrores, patifarias e sangue, muito sangue – não acabou coisa nenhuma. Está aí, vivíssima, posto que com outros personagens e cenários diversos.
Há os que atribuem a queda do comunismo à maneira soviética – que pouco ou nada tinha a ver com os postulados de Karl Marx, frise-se – à oposição que lhe foi movida pelo sistema oposto, o capitalismo. Isto está longe da verdade. A ideologia ruiu por seus próprios defeitos. Porque não soube se reciclar, se renovar para manter seu papel de contestação e retornar às origens, à utopia de uma sociedade sem classes e sem injustiças, porém consensual, sem um superpoder, no caso o onipresente Estado, a impor, a ferro e fogo, à sociedade o que quer que fosse.
Pelo contrário, em pouco tempo o sistema soviético tornou-se tradição, o que no jargão de ciência política é chamado de "conservadorismo". Cristalizou-se, esclerosou-se, enrijeceu-se. Ademais, a pretexto de opor-se ao capitalismo, tornou-se, na verdade – como ressaltou Erich Fromm no livro “A revolução da esperança” – uma de suas formas, e das mais ineficientes. Ou seja, caracterizou-se como “capitalismo de Estado”.
Paul Starr observou muito bem esse fenômeno ao constatar: "O comunismo soviético soçobrou vítima de suas próprias fraquezas endêmicas e não por obra de forças externas". E o escritor John Le Carré acrescentou: "No final das contas, não foram os espiões ocidentais que derrubaram o comunismo, mas Mikhail Gorbachev e as pessoas comuns do Leste europeu". Ou seja, foi a contestação que minou e findou por derrubar o que passou a ser a "tradição" e no seu aspecto menos saudável.
Toda sociedade precisa dessas duas forças. Uma, representa a estrutura. A outra, é o desenvolvimento. A primeira é denominada conservadora. A segunda é a liberal, ou seja, libertadora das amarras que impedem ou tentam impedir toda e qualquer renovação.
Em 1917, o comunismo era encarado, até mesmo no mundo capitalista, como o processo de mudanças sociais levado ao extremo, a ponto do golpe que o colocou no poder ser classificado de "Revolução". Em 1919, o jornalista norte-americano, Lincoln Steffens, de regresso da União Soviética, declarou entusiasmado: "Vi o futuro, e ele funciona".
Hoje, certamente, diria o mesmo. O motivo é que seria diametralmente oposto. No início do século, a ascensão do comunismo despertou seu entusiasmo. Hoje, se estivesse vivo, com certeza ficaria entusiasmado também, mas com a sua derrocada.
Todavia, enquanto o homem existir, as duas forças coexistirão, quer pacificamente (o que é sumamente improvável), quer em perpétua beligerância, o que é quase certo que irá acontecer. Ninguém é absolutamente conservador ou liberal puro. Todos temos um pouco das duas tendências, dependendo das circunstâncias. Ocorre que muitos não têm o equilíbrio necessário para que as duas formas de pensar coexistam harmoniosamente.
O psicólogo Konrad Lorenz, um dos maiores estudiosos do comportamento de nossos tempos, escreveu, num de seus ensaios: "Pensar é uma característica biológica da espécie humana. O pensamento serve para transmitir o conhecimento e para inová-lo. Por isso contestação (liberalismo) e tradição (conservadorismo) precisam existir sempre. E quem pretender partir do ponto zero será provavelmente um cretino".
A linha dura do Partido Comunista Soviético, que tentou o ridículo golpe de Estado de 19 de agosto de 1991, foi cretina, cretiníssima. Favoreceu, apenas, ao oportunismo de Bóris Yeltsin, cuja atuação política foi determinante não só para a derrocada comunista, como para a desagregação da União Soviética. Os golpistas não tinham em mente recomeçar do nada. Sua ação, aliás, foi o contrário disso. Foi uma tentativa desesperada de manter o que era, pela mais elementar das lógicas, insustentável àquela altura.
A corrente conservadora do PCUS aferrou-se a um conservadorismo caolho, àquilo que o sistema possuía de mais ineficiente, perverso, corrupto e apodrecido. Mikhail Gorbachev bem que tentou salvar o partido da ruína. Acreditou na possibilidade de sua mudança até o fim. Tanto que colocou o PC como principal pilar da perestroika, sem perceber que ao invés de contar com um aliado, dispunha, na verdade, de uma "quinta coluna".
O então presidente soviético precisou passar pela amarga experiência de ver de perto a traição de gente que só tinha lealdade com dogmas caducos, quando não com a defesa intransigente de privilégios pessoais indevidos e da busca do poder pelo poder. Não havia (nunca houve) a tão apregoada igualdade de direitos e de deveres no sistema que regia a então URSS. Vocês não estranham, por exemplo, o fato de, numa sociedade em que, oficialmente, não havia propriedade privada, tão logo ruiu, emergissem tantos bilionários? De onde surgiram suas fortunas, provavelmente (ou certamente) ilegítimas, para dizer o de menos?
A tradição, no que o homem tem de mais nobre, é indispensável. Leszek Kolakowski observou "A questão é, antes de tudo, saber como a sociedade humana pode sobreviver sem a presença de forças conservadoras, isto é, sem a tensão perpétua entre a estrutura e o desenvolvimento. Essa tensão é pura e simplesmente própria à vida..." O tema, como se vê, é polêmico e comporta, além de debates, madura reflexão.
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