Sunday, August 12, 2012

Obsessões de Borges

Pedro J. Bondaczuk

A obra de Jorge Luís Borges, de 41 livros, muitos editados em até 20 idiomas, enfocou praticamente todos os assuntos; Alguns, óbvio, mereceram, somente, ligeiras referências. Ninguém sabe de tudo e o escritor argentino, por conseguinte, também não sabia. Por maior que fosse sua cultura (e a dele era imensa), ele não tinha o dom da onisciência. Ninguém tem. Cinco temas, entretanto, predominaram em suas poesias, contos, narrativas curtas, ensaios e digressões literárias: os espelhos, os labirintos, os tigres, os punhais e os tipos humanos característicos da sua Buenos Aires natal.

A origem dessas obsessões (da maioria delas) está, conforme Borges afirmou em várias ocasiões, em sua infância. O crítico literário Leo Gilson Ribeiro, em sua excelente análise da obra borgiana, publicada no “Jornal da Tarde, na edição de 16 de julho de 1984, explica como se deu essa assimilação “mágica”, confirmada por outros analistas e por amigos do escritor e que se refletiu com tanta insistência em sua vasta obra literária. Analisemos, posto que resumidamente, cada uma delas.

Para a obsessão de Borges pelos espelhos, a melhor das explicações foi dada por sua irmã, Norah, casada com o crítico literário argentino Guillermo de La Torre. Ela aponta, claro, apenas a causa externa, não o processo psicológico que a ensejou. Essa fantasia infantil do escritor perdurou pelo resto da vida e está muito nítida, e é marcante, em sua obra literária. “Os espelhos foram uma obsessão durante a infância de Jorge. No quarto havia um, grande, que refletia sua imagem. Ficar só, na cama, com esse objeto à sua frente, era seu terror diário. Era uma ameaça contínua para ele. Jorge tinha medo, até, do vago reflexo do seu rosto”. Por que? Coisa de criança!

Leo Gilson Ribeiro acrescenta, a propósito: “Em casa se via triplicado por três espelhos de um armário grande e temia que aquelas três imagens pudessem mostrá-lo diferente do que ele realmente fosse. E se, de repente, ele surgisse não só diferente, mas metamorfoseado em algo monstruoso, apavorante, irreconhecível, irreversível?”

Muitos de nós, provavelmente, tivemos idêntico fascínio por espelhos, embora a maioria nem mesmo se dê conta disso. Observemos uma criança que começa a tomar consciência do mundo que a cerca e que veja esse objeto pela primeira vez. Sua reação inicial será, certamente, de curiosidade. Buscará uma forma de comunicação tátil com aquele “outro” que vê refletido no espelho e que lhe parece familiar e até semelhante.

Ao notar, todavia, que seus próprios gestos são reproduzidos com exatidão e detalhes pela “outra figura” – embora talvez não revele por palavras, por ainda não dominar a comunicação verbal – se a observarmos atentamente, notaremos, por seu ar, enorme perplexidade e uma necessidade de respostas, não raro seguida de uma reação de medo. Afinal, é normalíssimo temermos o desconhecido ou o incompreensível.

As demais obsessões de Borges pouco ou nada têm a ver com sua vivência real. São impressões impregnadas no espírito como frutos de leituras, da observação visual, de recorrentes e inconscientes associações de idéias. Os labirintos, por exemplo, conforme Maria Esther Vasquez, amiga do escritor, são frutos de sua lembrança de menino de uma gravura que viu, de Teseu e o Minotauro. As impressões que temos quando crianças são as mais poderosas e autênticas, por não sofrerem interferência de tentativas de análises e racionalizações. Fixam-se, simplesmente, na memória, nítidas e detalhadas, como numa chapa fotográfica virgem e de boa qualidade, que retém cada detalhe do que é observado e que, por qualquer motivo, nos impressiona. Foi o que aconteceu em relação ao labirinto de Creta, refúgio do cruel Minotauro, eliminado por Teseu, com a indispensável ajuda e cumplicidade de Ariadne.

Como pelo resto da nossa vida trazemos em nós a criança que um dia fomos, as lembranças da infância, volta e meia, vêm à tona. O cidadão comum não lhes dá maior importância. Já o artista, valendo-se do seu talento, faz delas matéria-prima para obras originais e duradouras. A esse propósito, Borges confessou que seu labirinto “é o assombro que cria a metafísica, como diz Aristóteles, e o assombro foi sempre uma das emoções mais comuns na minha vida como na de Chesterton, que dizia: tudo passa, mas sempre fica o assombro, sobretudo o assombro perante a vida de todos os dias”.

O primeiro contato de Borges com os tigres, outra de suas obsessões, ocorreu, conforme Leo Gilson Ribeiro, quando ele era colegial e morava perto de um jardim zoológico, que tinha magníficos exemplares desse elegante animal, originário da região de Bengala, na Índia. O futuro escritor passava horas e mais horas apreciando esses felinos e, seu vigor selvagem, era o que mais lhe impressionava neles. Gostava, principalmente, da cor intensamente dourada de sua pelagem. Isso impressionou-o tanto que, esse colorido dos tigres, foi a sensação cromática mais intensa que lhe ficou na memória quando ficou cego.

Já os punhais, têm ligação com sua origem, e duplamente. Primeiro, por ser argentino e assimilar as lendas de Martin Hierro e as tantas outras histórias gauchescas, que destacam atos de coragem e heroísmo nos duelos de “valientes”, que se confrontavam com armas brancas até a morte, portando-as na mão direita, tendo um lenço na esquerda ligando os contendores, para que nenhum deles “medrasse” e tentasse fugir da luta. Em segundo lugar, porque Borges descendia de uma linhagem de militares, categoria em que o patriotismo e a valentia são tidos como as mais exaltadas virtudes, ao lado da honra e da disciplina.

Finalmente, sobre Buenos Aires e seus tipos característicos, quem conhece a cidade – e não apenas superficialmente, na condição de turista – sabe a razão desse fascínio. O mesmo, por sinal, que fez estrangeiros ilustres, de atividades e temperamentos diferentes, como Carlos Gardel e Eugene O’Neil, se apaixonarem por ela. Borges, de acordo com Leo Gilson Ribeiro, tinha ciúmes de Buenos Aires. Julgava-se um pouco dono da cidade. Conforme o crítico, a capital portenha era “o objeto de seu culto exclusivo, de seu amor ciumento; e por que não dizer aos outros, pois, que não viessem vê-la, pois era apenas uma cidade grande, feia, triste, fria?”.

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