Pedro J. Bondaczuk
O poeta (e, no caso, não particularizo, mas generalizo, mesmo que essa generalização pareça, ou de fato seja, um estereótipo) por ter a sensibilidade aguçada, é, simultaneamente, um privilegiado e um sujeito condenado a sofrimentos que a maioria das pessoas não tem. O privilégio, óbvio, é o fato de sua aguçada emoção ensejar-lhe (caso tenha talento, claro) uma obra marcante que tanto agrada o intelecto do leitor quanto, e principalmente, o emociona. O lado ruim dessa característica, o preço (proibitivo) que tem que pagar por sua exacerbada sensibilidade é o sofrimento, a inquietação, a dor não raro apenas difusa e subjetiva, mas cujos efeitos são reais e constantes.
Seria apenas uma casualidade o fato de tantos poetas haverem cometido suicídio? Numa rápida pesquisa, quase que a esmo, arrolei nomes famosos do mundo das letras que, não suportando sofrimentos emocionais (que se refletiam no físico), não sabendo como lidar com desenganos e frustrações, deram cabo da vida. Entre estes cito, por exemplo, Antonin Artaud, Cesare Pavese, Florbela Espanca, Ingeborg Bachman, Mário Sá Carneiro, Paul Celan, Torquato Neto e vai por ai afora.
Seria mera coincidência? Não creio. Claro que não são todos os poetas que se vêem perdidos face a desenganos amorosos, a traições de amigos, a fracassos profissionais (no seu caso, literários) e a tantos e tantos desgostos que levam uma pessoa ao desespero. E muito menos só eles recorrem a essa atitude extrema, de dar cabo da vida. Mas é muito alta a taxa de poetas suicidas. E vários, que não se valem desse expediente, buscaram (e buscam) sufocar seus demônios interiores recorrendo ao álcool, às drogas e a todo e qualquer meio de fuga da realidade.
Fernando Pessoa, ele também notório sofredor, vergado sob o peso de sua genialidade (poucos têm estrutura para carregá-la com classe), afirmou, num célebre poema, que o poeta é, acima de tudo, “um fingidor”. Todavia, explicou, na sequência, de maneira magistral e tragicamente bela, a natureza desse fingimento: “Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente”.
Não quero, com isso, afirmar, que se o sujeito não for infeliz, se não conviver com o sofrimento, se não for afrontado continuamente pelo desespero, não pode ser poeta. Pode sim, e pode ser tão magistral quanto os que têm vidas marcadas por tragédias, quando não até mais. E muito menos afirmo que todo sofredor seja um poeta em potencial. Apenas me chama a atenção o fato de tantos escritores brilhantes conviverem (e, pior, serem vencidos) por aflições, mágoas, desencantos etc.
Um desses poetas sublimes, “doentes de sensibilidade”, que por razões que só ele poderia explicar (se é que poderia), deu cabo da própria vida, foi o português Antero Tarquínio de Quental, nascido em 18 de abril de 1842 em Ponta Delgada, no Arquipélago dos Açores. Escrevi a seu respeito recentemente, quando tratei da origem e das características do soneto. Destaquei que ele é considerado um dos melhores sonetistas de língua portuguesa de todos os tempos, rivalizando, nesse mister, com Luiz Vaz de Camões e José Maria Du Bocage. Sua biografia atesta que se tratou de uma inteligência superior, mas, sobretudo, de uma figura humana extraordinária, sensível, observadora, idealista, com emoções brotando por todos os poros.
Ainda adolescente, aos 16 anos de idade, ingressou na Faculdade de Direito de Coimbra, onde, precocemente, tomou contato com as principais idéias em voga na Europa de então. Moço influenciável, isso levou-o ao afastamento dos valores conservadores e católicos que herdou da família. Abraçou, com paixão, os postulados socialistas. Em 1865, foi para Paris, disposto a colocar em prática suas idéias de igualdade, fraternidade e solidariedade, de uma sociedade sem classes em que imperasse a justiça social. Na capital francesa de então, essa utopia empolgava a mocidade idealista, que acreditava na possibilidade de se “consertar o mundo” sem a necessidade de se recorrer às violência.
Ao voltar para Portugal, em 1871, Antero dedicou-se, quase por completo, à defesa dos seus ideais ideológicos. Em 1873, todavia, a morte do pai fez com que regressasse aos Açores, para assumir os negócios da família. A partir dessa época, uma série de aborrecimentos atormentou o já maduro e desencantado poeta. Viu, por exemplo, a violenta repressão às lutas operárias, sem que pudesse fazer nada em favor de sua causa.
A produção poética de Quental foi reflexo direto da sua vida. Isso fica bastante claro ao se analisar seu livro “Sonetos”, organizado pelo crítico literário Antônio Sérgio, dividido em oito partes. Na primeira, salta à vista o poeta lírico, que segue todas as regras da Escola Romântica e desenvolve uma temática centralizada no amor paixão. Pudera! Era jovem e todo ele emoção. Os hormônios prevaleciam sobre os neurônios. Já a segunda parte marca seu apostolado social. Desenvolve uma poesia revolucionária para a época, em que vem à tona todo o seu fervor ideológico. São as etapas mais emotivas e, por conseqüência, menos reflexivas da sua carreira literária.
As outras seis fases são menos nítidas, mas ainda assim identificáveis e poderia classificá-las de filosóficas. São, respectivamente: “a do pensamento pessimista”, “a do desejo de evasão”, “a da idéia da morte”, “a do pensamento em Deus, uma espécie de reconversão”, “a da metafísica” e, finalmente, “a da voz interior e do amor puro e sem limitações de tempo e de espaço”.
Percebe-se um desespero crescente, um desencanto irreversível em suas composições, reflexos do seu sofrimento. Muitos preferem os sonetos que compôs nas duas fases iniciais. Gosto deles, sem dúvida, mas minha preferência recai sobre as produções da maturidade que, apesar de uma certa amargura que contêm, são densas, belas, de uma beleza trágica e, sobretudo, com conteúdo.
Selecionei três sonetos de Antero Quental, sem me preocupar com as etapas em que foram compostos. A própria temática abordada, todavia, nos dá uma indicação do período em que vieram à luz. Como este “Ideal”, que por si só revela as aspirações do poeta na ocasião.
Ideal
Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vênus de cintura estreita.
Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona que se agarras às crinas
Dum corcel e combate satisfeita...
A mim mesmo pergunto e não atino
Com o nome que se dê a essa visão
Que ora amostra, ora esconde meu destino...
E como uma miragem que entrevejo,
Ideal que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
O soneto seguinte, “Hino à Razão”, reflete seu fervor ideológico, sua convicção de que os postulados da igualdade, fraternidade e solidariedade iriam se impor por si sós, pela sua justiça, sem necessidade do recurso às violência. Acreditava numa revolução pacífica, sem confrontos e barricadas. Cria na prevalência da razão, característica que deveria prevalecer no único animal da natureza que pensa e que (supostamente) tem livre arbítrio. Claro que as coisas não são bem assim. Mas...
Hino à Razão
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz de um coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade, entre os clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
Finalmente o soneto “Solemnia verba” reflete certo desencanto, inegável decepção face ao que o poeta viu e viveu. Ainda assim, todavia, mantém acesa a chama da esperança de que o amor o redima, bem como à humanidade e faça com que todo o sofrimento passado, todas as decepções e frustrações tenham, no final das contas, valido a pena.
Solemnia verba
Disse ao coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andamos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos.
Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!
Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,
Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.
Acometido de estranha doença, Antero Quental foi forçado a se manter, a maior parte do tempo, deitado de costas numa cama. O acúmulo de sofrimentos, quer os morais, quer os emocionais e quer, principalmente, os físicos, aos poucos minou sua resistência mental, tirando-lhe a vontade de viver. Em 11 de setembro de 1891, Antero de Quental deu cabo da vida, com um tiro de revólver. O “fingidor” tombou vencido face à “dor que deveras sentia”.
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1 comment:
Magnífica a sua abordagem sobre o tema. E sobretudo pelo seu esforço em pesquisar o assunto, esmiuçando esta intrigante realidade que nos causa um - vamos dizer - mórbido deleite. "São sofredores admiráveis" como procuro salientar no meu livro A Passagem dos Cometas".
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