Thursday, August 02, 2012

Feliz na arte e infeliz na vida

Pedro J. Bondaczuk

A poesia de Florbela Espanca é das mais refinadas e belas da língua portuguesa. Versa, em sua maior parte, sobre a grandeza, as delícias e a transcendência do amor, mas também sobre os tormentos, torturas e decepções que ele, não raro, propicia. Contudo, esse é um sofrimento que, posto ser intenso, por ele não nos arrependemos de passar. Muito pelo contrário. São os espinhos que valorizam e dão até maior encanto a essa mística rosa, fonte da felicidade e da vida. Sobretudo, desta.

Os apaixonados – mesmo os que atualmente não ostentam mais essa condição, mas que um dia a ostentaram – sabem bem a que me refiro. Florbela foi mulher apaixonada, que cantou a vida e o bem supremo dela, que é, sem dúvida, esse magno sentimento. São raros os adolescentes de minha geração que não colecionaram seus sonetos magníficos ou que não brindaram suas amadas com seus versos profundos, emotivos e muito bem estruturados. Eu agi assim e não tenho pejo de confessar.

Quem não conheça sua biografia, mas somente sua obra, tende a pensar que se tratou de uma pessoa feliz, que amava a vida e buscava desfrutar o que de melhor ela tem a oferecer. Não lhe passa nem remotamente pela cabeça que a poetisa magnífica, de versos tão delicados, e apaixonados (e, sobretudo, apaixonantes) tenha passado por tantas e tão dolorosas experiências, por circunstâncias tão dramáticas, por decepções de toda a sorte e por tragédias sem fim. E, muito menos, que no auge do desespero, tenha dado cabo da própria vida (após duas tentativas anteriores frustradas) – e numa idade precoce, em que recém começava a adquirir maturidade emocional, e, portanto, literária, na data exata em que completou 36 anos – cometendo suicídio. Que pena!!!

Florbela Espanca nasceu em 8 de dezembro de 1894 em Vila Viçosa, Portugal. Publicou, em vida, apenas dois livros: “Livro da Mágoa” (1919) e “Livro de Sóror Saudade” (1923). Os demais, “Charneca em flor”, “Relíquias” e “Juvenília”, poesias e “Dominó Negro” e “Máscara do destino”, contos, foram publicados postumamente, em 1931.

Seu nome verdadeiro, aquele com que foi registrada, foi Flor Bela de Alma Conceição. Filha ilegítima, o pai, João Maria Espanca, tardou em reconhecê-la como filha. Na verdade, fê-lo tão somente após sua morte, quando a poetisa já era escritora consagrada e bastante requisitada. Dá, certamente, para o leitor imaginar a carga de preconceito que a menina teve que suportar por uma circunstância alheia à sua vontade e ao seu controle, por algo de que não tinha culpa, de que, na verdade, era a grande, se não a única, vítima.

Afinal, a poetisa veio ao mundo em fins do século XIX, e no interior de Portugal, onde as pessoas eram mais intransigentes em questões de moral do que nas grandes cidades. Ainda hoje, em pleno século XXI, as crianças nascidas fora do casamento sofrem muito com isso, notadamente nos grotões mais escondidos e recônditos do Brasil, de Portugal ou de qualquer outro país. O preconceito é uma praga muito difícil de ser erradicada.

A mãe morreu quando Florbela ainda era muito criança, levando para o túmulo o que então era considerado a mais grave pecha que podia marcar a reputação de qualquer mulher. E para sempre. Qual? A de mãe solteira! A garotinha, dessa forma, foi criada pelo pai, mesmo sem que esse reconhecesse a paternidade. Diga-se, contudo, a seu favor, que ele proporcionou à filha toda a oportunidade de educação de primeira ordem. Nesse aspecto, ela foi, sem dúvida, privilegiada.

Florbela estudou no Liceu de Évora, numa época em que poucas, pouquíssimas mulheres tinham acesso ao estudo. Naquele tempo, o papel feminino era rígida e inflexivelmente predeterminado desde seu nascimento. Era educada para servir, para ser submissa, para ocupar função considerada secundária e se conformava com isso. Pelo menos, a maioria, não ousava contestar nada disso. Muitas, até, defendiam esse papel. Solteira, a mulher deveria aprender prendas domésticas – cozinhar, costurar, administrar uma casa, cuidar e educar os filhos e, quando muito, se tivesse talento, aprender a tocar algum instrumento musical, de preferência o piano – e só. Estudar? Nem pensar! Trabalhar fora do lar? Só em circunstâncias extremas e, assim mesmo, em funções subalternas, quando não humilhantes.

No fim da adolescência, cabia-lhe casar, de preferência com o homem escolhido pelos pais e rigorosamente virgem. E, casada, tinha que se submeter completamente ao marido, ou seja, trocar uma submissão (a ao pai) por outra (ao companheiro). Isso permaneceu igual, com poucas variações, até recentemente, ou seja, até meados dos anos 50 do século XX. Nesse aspecto, portanto, Florbela nunca se enquadrou no figurino da época. Provavelmente por isso, nunca foi feliz no casamento. Casou-se por três vezes e em todas elas o relacionamento redundou em fracasso, em dolorosas e dramáticas separações;

Com vinte e dois anos de idade, Florbela iniciou o curso de Direito em Lisboa. Mas desde cedo mostrava inequívoca vocação para a literatura, principalmente para a poesia. Sua obra, pelo menos a inicial, não mostrava nenhuma preocupação humanista ou social. Voltava-se inteira para as delícias do amor correspondido e para as frustrações e mágoas dos relacionamentos conflituosos. O pai apenas assumiu a paternidade, reitero, anos após a morte de Florbela. A poetisa é considerada, com toda justiça, a precursora do feminismo em Portugal.

Em 1919, sofreu um aborto involuntário. A partir daí, começou a apresentar sintomas mais sérios de desequilíbrio mental. A morte do irmão, Apeles (num acidente de avião) abalou-a bastante e agravou ainda mais seu estado psicológico, que já não era dos melhores. O auge do seu desespero foi atingido no último trimestre de 1930. Tentou o suicídio por duas vezes, naquela oportunidade, em outubro e em novembro daquele ano, às vésperas da publicação da sua obra-prima, “Charneca em flor”. Em ambas, conseguiu ser salva.

Todavia, após o diagnóstico de um edema pulmonar, suicidou-se, no dia do seu aniversário, em 8 de dezembro de 1930. Mais esse problema, para ela, foi demais para a sua frágil e tão vulnerável constituição psicológica. Tanto tentou esse recurso extremo, até que conseguiu, para consternação generalizada. “Charneca em flor” viria a ser publicado em janeiro de 1931, poucos dias depois da sua morte e se tornar best-seller, inclusive no Brasil. Mas... Florbela não estava mais viva para testemunhar e gozar seu merecido sucesso.

Escrever sobre poetas, sem exemplificar com um ou outro dos seus poemas, no meu entender, não faz nenhum sentido. Afinal, via de regra, sua alma está refletida exatamente em seus versos, “fotografias” emocionais de momentos especiais, que, se lidos atentamente, revelam muito mais da sua personalidade e sentimentos do que a mais detalhada e extensa biografia. Selecionei três sonetos de Florbela Espanca, entre as centenas de outros, tão magníficos ou mais do que os selecionados, para partilhar com vocês. O primeiro deles é este:

Amiga

“Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim? O que quiseres
E sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por me dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!...Que fantasia louca
Guardar, assim, fechados nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...”

Nunca conseguirei entender como uma pessoa, que amava com tanto respeito e carinho, jamais conseguiu ser correspondida. Meu pasmo não é, óbvio, em relação à poetisa. É em relação ao sujeito (ou sujeitos) que conseguiu não corresponder a um afeto tão genuíno, precioso e profundo. Há pessoas que jogam fora a felicidade que lhes é oferecida de bandeja a troco de nada. Ou em troca de ilusões e fantasias. O segundo soneto que separei não é menos apaixonado (e apaixonante). Desconfio que seja até mais profundo do que o primeiro. Diz:

O meu impossível

“Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!...

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam...Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...”

Nestes versos, belíssimos, ressaltam as dores, mágoas e a desagradável surpresa de um amor não correspondido, frustrado e sem esperanças. É um desabafo, sim, porém sem as cores escuras e sombrias do despeito. Não trazem nenhuma acusação, nenhuma cobrança, nenhuma reprimenda, nada contra quem tanto a magoou. Apenas expressam a dor de um coração machucado. Finalmente, o terceiro soneto trata desse dom, dessa maldição para alguns e bênção para muitos, que é o talento para a poesia. Encerro, pois, estas reflexões com estes versos, com os quais concordo e os quais subscrevo.

Ser poeta

“Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente.
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!”

Face a tão grandiosa sensibilidade, nada tenho a dizer ou a acrescentar. E nem poderia.

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