Pedro J. Bondaczuk
O Cinema, assim como a Literatura – e, ademais, todas outras formas de arte –, tem suas unanimidades (ou quase), seus ídolos e referenciais. Em contrapartida, conta, também, com seus rebeldes, inovadores, contestadores até, que remam contra a maré e se opõem aos cânones instituídos que, via de regra, tendem a engessar a criatividade. O mínimo que conseguem é visibilidade na opinião pública. Frequentam as manchetes da imprensa, conquistam adeptos, são contestados e geram debates, que, se levados a efeito em alto nível, sempre são positivos para evitar que idéias se esclerosem, envelheçam e até se “fossilizem”.
Está neste caso o diretor cinematográfico francês Jean-Luc Godard que hoje, próximo de completar 82 anos de idade (que completará em 3 de dezembro) está afastado da mídia (e do cinema), mas que, durante muito tempo gerou controvérsias, ácidas polêmicas e azedas disputas em decorrência dos filmes que dirigiu. O mínimo que se pode dizer dele é que, quando em plena atividade, foi um dos cineastas mais comentados (e combatidos) da Sétima Arte, notadamente pelos temas que enfocou e pela forma que o fez em sua vasta filmografia.
A cada nova produção, despertou candentes e contraditórias paixões, como ódio, amor, repulsa e incondicional admiração, entre tantas. Por exemplo, em 1985, freqüentou as manchetes de jornais e revistas, além de grandes espaços na televisão e no rádio, do Brasil e de várias partes do mundo, por muito tempo, por meses seguidos, acusado, na oportunidade, sobretudo, de cometer “sacrilégio”, ao transpor para a tela, em versão que argumentou ser modernizada, o mistério da concepção virginal da Virgem Maria, um dos principais dogmas da Igreja Católica e de outras tantas denominações cristãs.
Foi, no Cinema, guardadas as devidas proporções, o que Salman Rushdie se tornou na Literatura, com seu romance “Versículos satânicos”. Como todos sabem, esse livro polêmico e tão comentado (mas desconfio que pouco lido) valeu ao escritor indiano, naturalizado britânico, uma sentença de morte (felizmente jamais executada) ditada pelo então líder religioso supremo dos muçulmanos xiitas do Irã, o aiatolá Ruhollah Khomeini. Rushdie teve que viver por alguns anos se escondendo de seus potenciais algozes.
Godard enfrentou oposição semelhante de Roma, posto que sem tanta virulência, claro. Não foi “condenado à morte”, como o escritor indiano. Na ocasião, foi chamado de louco, irreverente, bufão, impostor, gênio e inovador, entre tantas classificações, dependendo de quem o avaliava, se opositores ou defensores. Mas, quem foi, de fato, esse cineasta, que despertou tantas e variadas paixões e profunda curiosidade dos que não o conheciam até então e nada sabiam a seu respeito, até que seu filme “Je vous salue Marie” fosse rodado e posteriormente vetado pela censura, na França e em diversos países (inclusive no Brasil)?
Concordando ou não com suas escolhas e atitudes, considero, pessoalmente, que se tratou, acima de tudo, de um destruidor quer de conceitos tradicionais, quer de preconceitos cristalizados, que são sempre perigosos e daninhos. Em certos aspectos, tratou-se de um revolucionário, de um inovador por excelência de sua arte, o cinema. Ele próprio se definiu como “niilista”, ao afirmar: “Não há oportunidade de se fazer coisa alguma, a não ser se destruindo o que se aprendeu”. Esse niilismo artístico, óbvio, trouxe-lhe muitas complicações e dores de cabeça, sobretudo, reitero, com a censura de seu país (e de muitos outros).
Por exemplo, a abordagem desabusada de Jean-Luc Godard, a propósito da guerra de independência da Argélia, travada pela França com a então sua colônia do Norte da África, em fins da década de 1950 e início da de 1960 do século XX, no filme “Le petit soldat”, fez com que a exibição dessa produção cinematográfica fosse vetada em território francês durante três anos. Findo o conflito armado, porém, cicatrizadas as feridas dele decorrentes, o público pôde, finalmente, conhecer, e consagrar essa obra desabusada, moldada numa deliciosa, posto que irresponsável linguagem.
Outros tantos filmes de Godard geraram polêmicas semelhantes, alguns mais, outros menos, e não necessariamente por razões políticas. Apenas para citar um exemplo (poderia mencionar tantos outros), destaco “Uma mulher casada”, em que o controvertido (e atrevido) diretor disseca, literalmente, a vida amorosa de uma burguesa de Paris. Para que essa produção fosse liberada pela censura, e exibida, foram exigidos inúmeros cortes, das cenas consideradas mais picantes. Ainda assim, o filme causou escândalo na imprensa e nos círculos conservadores da França.
Numa das tantas entrevistas que deu, Godard mostrou4 que pouco se importava com o que diziam a seu respeito. Pelo contrário, parecia divertir-se com as opiniões, quer negativas (principalmente) quer positivas (de alguns). Tanto que, respondendo a uma pergunta a propósito, disse, em tom um tanto irônico: “Chamam-me de revoltado, doente, louco. Truffaut diz que sou um velho compulsivo. É isso mesmo. Sou como uma empregada doméstica, uma doméstica do cinema”.
Diga-se, a favor de Jean-Luc Godard, que, entre outras tantas coisas, foi o criador de um movimento cinematográfico inovador, hoje seguido por dezenas de outros diretores, embora um tanto elitizado e não ao gosto popular. Refiro-me a “nova onda”, cujo nome no Brasil foi conservado (pedantemente) por nossos críticos e cinéfilos (notadamente os da chamada “Geração Paissandu”, em referência ao cinema de São Paulo onde os filmes de arte eram costumeiramente exibidos), em sua forma original francesa: “Nouvele Vague”. Isso se deu com o filme “Acossados”, o primeiro longa metragem do polêmico diretor, após ter feito uma série de curtas.
O desejo de Godard de fazer cinema exigiu-lhe imensos sacrifícios. Determinado (ou teimoso?), foi superando os obstáculos um a um, principalmente o maior de todos: o de falta de dinheiro. Fez tudo o que estava ao seu alcance para reunir capital para rodar filmes que sequer tinham perspectiva de retorno dos custos. Por exemplo, para rodar sua produção de estréia, o curta metragem “Opération Betón”, chegou a trabalhar, até, como operário na construção de uma barragem na Suíça. Nesse tempo, no já longínquo ano de 1954, o então futuro cineasta, que na ocasião estava com 24 anos de idade, já vivia intensamente o cinema, posto que na condição de mero crítico da Sétima Arte. Como se vê, sua vida parece, até, mais interessante do que sua polêmica obra.
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