Wednesday, January 09, 2013

Hugo ou nada

Pedro J. Bondaczuk

A obra literária de Victor Hugo, para que se possa lhe fazer justiça, tem que ser avaliada em conjunto. Por exemplo, caso quem se proponha a fazer essa análise leia, somente, um ou outro livro de menor relevância do autor e que não conheça os demais, talvez fique decepcionado com sua qualidade e faça imagem equivocada a seu propósito . E é provável, até, que conteste não somente sua genialidade, como inclusive sua competência. Seria (óbvio) conclusão injusta (se não burra), por ter sido feita, no mínimo, de maneira incompetente, por não avaliar todos os dados que deveria e em seu devido contexto.

Em sentido oposto, se tiver lido somente o que de melhor o escritor produziu (e, no meu modo de encarar, trata-se da maioria da sua vasta obra), terá, igualmente, idéia não tão precisa assim da sua qualidade, por superestimação, embora neste caso se aproxime mais da verdade. Destaque-se que Víctor Hugo se valeu de praticamente todos os gêneros literários. Os temas que explorou foram variadíssimos, incursionando em múltiplos campos das artes, da filosofia e da política, entre outros.

Não vou cair no exagero de afirmar que conheço “toda” sua obra, pois se afirmasse, estaria faltando com a verdade. Li, todavia, cerca de um terço dos livros que publicou, por volta de 30 dessas produções, o que me permite uma avaliação, se não exata, pelo menos criteriosa e bastante aproximada da exatidão. Por uma questão de gosto, e de temperamento, minha preferência recai sobre sua poesia, grandiosa, criativa, recheada de metáforas magníficas e rimas inconcebíveis de tão geniais, composta numa linguagem vibrante, apaixonada, delirante até, que mexe com meus sentimentos e me torna cúmplice da sua copiosa inspiração.

Cite-se a grande epopéia em língua francesa que compôs, “A legenda dos séculos”, iniciada em 1859 e concluída, apenas, em 1883, dois anos antes da sua morte. Dizer que se trata de obra grandiosa é pouco ou q uase nada. Todos os adjetivos que conheço são frágeis para qualificá-la. Diria que é impressionante, no mais positivo sentido do termo. Tanto que impressionou, e bastante, o nosso gênio das letras, Machado de Assis, que citou esse poema épico em várias de suas crônicas. Pudera! Eu também, que nem sou regular, também o cito. No caso do nosso “Bruxo do Cosme Velho” e Victor Hugo só posso constatar: “os gênios se reconhecem”.

Claro que romances de Hugo, com personagens marcantes e profundamente humanos, impressionaram-me positivamente e tiveram influência profunda em minha vida, cuja intensidade sequer consigo dimensionar. Alguns deles se destacam, como é o caso, por exemplo, de “Os miseráveis”, possivelmente seu maior sucesso editorial, que vendeu uma quantidade impressionante de exemplares, foi traduzido para dezenas de idiomas, teve uma infinidade de edições e que, volta e meia, continua sendo reeditado, em várias partes do mundo e em muitas línguas, com uma periodicidade impressionante, e isso quase dois séculos após haver sido escrito.

Outro livro, talvez até mais conhecido, difundido e apreciado, e que me marcou profundamente, foi “Notre-Dame de Paris”, que em algumas edições foi publicado com o título de “Nossa Senhora de Paris” e em outras foi intitulado “O corcunda de Notre-Dame”, aliás, muitíssimo mais popular sob essa designação, principalmente depois que foi adaptado para as telas de cinema, num filme que se inscreve entre os campeões de bilheteria de todos os tempos e de todos os lugares em que foi exibido.

Li esse romance, pela primeira vez, no original. Embora tivesse muitas dificuldades para entender alguns trechos, dada minha carência de vocabulário do idioma francês, concluí a leitura inebriado, hipnotizado, quase que em estado de choque. Anos depois, reli-o, posto que traduzido. E não me sai, desde então, da retina a figura patética e estranhamente lírica do personagem Quasimodo, tal a perfeição da sua descrição feita por Hugo.

Esse homem, no enredo, foi, sobretudo, vítima de absurdo e covarde preconceito por parte dos que o conheceram, dada sua deformidade física. Todavia, essa monstruosa figura era terna e apaixonada. Nutria um dos mais belos, profundos e genuínos sentimentos de amor por uma mulher que era o oposto dele: bela, sedutora e charmosa, ou seja, a cigana Esmeralda. E esse sentimento foi de tal sorte poderoso e avassalador, a ponto do infeliz e disforme apaixonado arriscar a vida, sem titubear, para defendê-la, quando julgou-a em perigo. Hugo ressaltou, sutilmente, nas entrelinhas, que “os feios também amam”. E como!!!

Isso levou-me a refletir, inúmeras vezes, no quanto algumas pessoas são ignorantes, maldosas e estúpidas, julgando os outros exclusivamente pelo supérfluo e mutante, pela aparência, considerando-os inferiores e dignos de menosprezo e chacota caso sejam penalizados pela natureza com alguma deficiência física ou qualquer outro fator que os torne diferentes do “padrão comum”, por elas aceitável. Fazem, pois, dos que tiveram essa desventura, duplamente vítimas, já que, em geral, estes não pediram e nada fizeram para serem como são.

Esse tipo de preconceito sempre esteve, e ainda está, não tenho dúvidas, fundamente arraigado no espírito e na mente de pessoas tacanhas que, além de não olharem para os próprios defeitos (via de regra até piores do que os dos que julgam tão cruelmente), são incapazes de raciocinar e de concluir o óbvio: que o valor real de um ser humano não é e não pode ser medido por sua aparência física, mas pelo que de fato ele é e faz. Ou seja, por sua capacidade de raciocínio, de compreensão e de ser útil a si e ao próximo. E que beleza é algo subjetivo e acima de tudo perecível. O tempo se encarrega de destruí-la inexoravelmente. Esse romance de Víctor Hugo, portanto, é grandioso e fundamental, principalmente nesse aspecto.

Aliás, teve tamanha influência na França daquela época que até mexeu com os brios dos políticos (oportunistas, como sempre) e levou-os a reformar a famosa catedral de Paris e áreas adjacentes, que antes da publicação do livro estavam decrépitas e decadentes, o que foi ressaltado por Hugo, pois o local se transformou, de repente, num ponto de convergência, numa das principais atrações turísticas da capital francesa, o que é até hoje, atraindo turistas do mundo todo. Poucos (se é que os há) escritores atuais podem se orgulhar de exercerem tamanha influência em seus países e em sua época. Muito menos no mundo. Hugo fê-lo e com um simples livro de ficção.

Mas há tantos outros romances marcantes e memoráveis desse gênio das letras, embora nenhum tão famoso e lido como os dois que mencionei. Podem ser citados, neste caso, por exemplo, “O homem que ri”, “Último dia de um condenado”, “Noventa e três” (tratando do período de terror que sucedeu à Revolução Francesa, com a absurda quantidade de execuções na guilhotina), “Os trabalhadores do mar” e vai por aí afora.

Reitero: sua temática foi copiosa e variada. A partir de 1849, por exemplo, concentrou-se em quatro grandes assuntos, com suas variantes, dedicando um quarto do que escrevia à política, outro um quarto à religião e o terceiro um quarto à filosofia. O quarto? Bem, era destinado à poesia. Foi, sobretudo, o grande renovador do Romantismo na França, livrando-o de algumas supérfluas e até absurdas amarras formais, que tolhiam a criatividade dos escritores.

Humilde, tinha por modelo seu conterrâneo François-Renée de Chateaubriand, ilustre figura da escola literária então em voga. Seria até lógico que sofresse influência desse escritor e, de fato, sofreu. Todavia, sua obra superou, em muito, à do seu paradigma, quer em quantidade, quer em qualidade e, principalmente, em variedade, criatividade e durabilidade. Quando jovem,. Hugo afirmou, certa feita, com paixão e convicção: “Chateaubriand ou nada!”. Mal sabia, porém, que viria a se tornar parâmetro de quase perfeição (nada no ser humano é perfeito), para milhões e milhões de aspirantes a escritores – na França e fora dela, no seu tempo e nas eras vindouras – que, se não disseram (e não dizem), bem que poderiam (e podem) dizer: “Hugo ou nada!!!”.


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