Pedro J. Bondaczuk
A obra literária de Victor Hugo é copiosa, variada, vibrante e memorável. Fosse um escritor desconhecido qualquer – e não o magnífico homem de letras, envolto em glória, que conta com o reconhecimento quase que irrestrito dos que amam e respiram Literatura que foi – ao lermos qualquer dos seus tantos livros (cuja quantidade gira ao redor de uma centena ou por volta disso), não deixaríamos de exclamar, espontaneamente, sem que nem mesmo percebêssemos: “genial!!!”. É, no meu entender, é o termo que melhor o define.
Hugo explorou, praticamente, todos os gêneros literários. E fê-lo com idêntica competência, vibração, exuberância e, acima de tudo, paixão. Isso! Victor Hugo foi um sujeito apaixonado: pelas pessoas, pela arte, pelas letras, pela humanidade, pela vida. Há quem considere seu estilo exagerado, excessivamente verboso e costumeiramente retórico (o meu é assim). Tolice. Era, isso sim, um escritor do qual se pode afirmar, sem incorrer em nenhum exagero, que escrevia “botando chispas pelos olhos”. É impossível ler qualquer dos seus livros, não importa se de poesia, romance, novela ou ensaio, com indiferença. De imediato, somos induzidos a tomar partido, não importa se a favor ou se contra. Raríssimos escritores tiveram (ou têm) essa capacidade.
Alguns escritores também usam linguagem pomposa, não raro empolada, mas apenas para disfarçar falta de conteúdo no que escrevem. Hugo, pelo contrário, esgrimia com palavras e imagens, elaborava metáforas originais, valia-se de expressões que em determinados trechos nos parecem frutos até de delírio, para ressaltá-lo. E consegue. A obra dele tem conteúdo. Aliás, é o que mais tem.
Qualquer análise, pois, por mais superficial que seja, da sua vasta, copiosa e sumamente criativa obra, se fosse feita em apenas meia dúzia de palavras, seria uma heresia. Não faria justiça ao seu imenso talento. Portanto, tratarei dela – mesmo que resumidamente – por um par de dias. O leitor, inteligente e perspicaz, certamente entenderá a razão.
Antes de qualquer tentativa de análise dos livros de Victor Hugo convém reiterar um esclarecimento que faço periodicamente a propósito da natureza e do objetivo destes meus textos. Embora neles eu aborde, com certa assiduidade, biografias das mais notáveis personalidades, notadamente de artistas, eles não são relatos biográficos. São meros comentários à margem, descompromissados e livres, de determinados aspectos da vida desses personagens. Não guardam – pois não se propõem a guardar – qualquer ordem cronológica. As opiniões emitidas são estritamente pessoais, muitas polêmicas, mas todas fundamentadas em algum tipo de documentação.
Ademais, estas reflexões não são resenhas de livros e muito menos são críticas literárias. Os critérios de avaliação que utilizo, portanto, não são os “técnicos”. Não tenho a mais remota preocupação, não raro até obsessiva de muitos críticos – a de encontrar cochilos e impropriedades nos textos que avaliam – pois não me julgo nenhum árbitro da correção e do bom gosto literários. Muitos entendem que o ato de avaliar determinada obra tem, necessariamente, que detectar defeitos de quaisquer espécies para serem criticados (não raro de forma irônica, desrespeitosa e mordaz), até para justificar a crítica. Entendo que não tem.
Reitero, pois, que estes textos são apenas “comentários”, e rigorosa e estritamente pessoais, com os quais o leitor pode concordar ou não. A maioria me parece que concorda (vejam que responsabilidade a minha!). Todavia, mesmo os que discordam, ou talvez principalmente eles, satisfazem meu objetivo (se não exclusivo, pelo menos o principal) ao escrever estas reflexões. Ou seja, refletem.
Não comentarei, hoje, a copiosa e variada obra de Victor Hugo, apesar deste tão extenso preâmbulo sugerir isso. Faço melhor. Partilho, com vocês, o poema abaixo, deste que é considerado por muitos como “o maior poeta francês” de todos os tempos, para preparar seu espírito para o que virá na sequência. Todavia, peço licença para fazer só mais uma observação. Discordo quando se diz que determinado artista ou certa personalidade é o “maior” ou o “melhor” na sua arte ou atividade. Trata-se de um tipo de avaliação até injusto, por ser rigorosamente subjetivo e por não contar com parâmetro consensual e infalível para uma aferição objetiva e racional. Prefiro a forma mais cautelosa de manifestar esse tipo de apreciação. Em vez de afirmar que Fulano é o “maior” ou o “melhor” no que faz, opto por colocar antes a expressão “um dos”... Dito isso, deliciem-se com o expressivo poema abaixo de Victor Hugo
De quem a culpa?
"--- Tu fostes incendiar a Biblioteca?
--- Mas é um crime inaudito e ruim,
--- Sim,
queimei-a".
"Que mesmo contra ti, infame, praticaste!
A luz que a tua alma aclara, intrépido, apagaste!"
"É a tua própria luz que acabas de soprar.
Isso que teu ódio ímpio e louco ousa queimar
é teu bem, teu tesouro, a herança da tua alma,
o livro te protege, instrui, anima e acalma".
"O livro toma sempre a tua defensiva.
Vale uma biblioteca o ato de fé, que agora,
cada uma geração, nos livros, rediviva,
presta: é a noite rendendo um testemunho à aurora.
Oh! nesse venerando acervo de verdade,
nessas obras geniais jorrando claridades,
tumba da antigüidade erguida em repertório.
Nos séculos de luz, nesse genuflexório,
no passado, lição que soletra o porvir.
Nisso que se criou para não se extinguir.
Nos poetas, nos heróis, belos, imarscíveis,
na ruma divinal dos Eschylos terríveis,
dos Homeros, dos Jobs, de pé sobre o arrebol,
em Moliére, em Voltaire e Kant, à luz do sol,
ímpio! Foste chegar uma tocha inflamada!
Todo o espírito humano em cinza, em fumarada!
Esqueceste que o livro é teu libertador?
Lá na altura ele está, como altivo condor:
brilha. Porque ele brilha é que nos ilumina;
destrói o cadafalso, a miséria, a chacina.
Ele fala, e nos diz: nada de escravo ou pária.
Abre um livro, vai ler: Platão, Milton, Beccaria,
esses profetas: Dante, e Corneille e Shakespeare;
a alma imensa que têm, em ti sentes surgir;
lendo-os, sentes-te igual a eles todos, altivo;
lendo, tornas-te meigo, austero e pensativo.
Eles, em tua mente, aumentam de grandeza.
À escuridão de um claustro a alva vem dar clareza.
À proporção que ele entra e afunda em tua mente,
tornas-te mais feliz, tornas-te mais vivente.
Tua alma torna-se apta a argüida responder.
Reconheces-te bom e sentes derreter
como a neve ao calor, a vaidade sombria,
o mal, o preconceito, a tirania!
Pois, no homem o saber é o que chega primeiro;
depois a liberdade. Esta divina luz
é tua, e foste tu que, de pronto, a apagaste.
O livro atinge os fins que tu próprio sonhaste.
Entra em teu pensamento e solta e desenleia
os grilhões com que o erro, a verdade aperreia.
A consciência é um nó górdio horrível, que asfixia.
O livro é teu guardião, teu médico, teu guia.
Tua raiva, ele acalma, e tira-te a demência.
Eis o que perdes, tu, por tua intransigência.
O livro é teu tesouro; é a riqueza, é o saber,
o direito, a verdade, a virtude, o dever,
a razão, aclarando a tua inteligência.
E tu queimaste tudo, infame!...
--- Eu não sei ler!"
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