Pedro J. Bondaczuk
A necessidade e o acaso, não raro, revelam talentos em todas as áreas de atividade e não é diferente, claro, quando se trata de literatura. Aliás, atrevo-me a dizer que nessa arte isso é até mais comum do que em outros setores da vida Há pessoas que, subitamente, se transformam (ou são transformadas) em “escritoras”, muitas vezes (dependendo das circunstâncias) à sua revelia, sem que sequer tenham a menor intenção disso.
Não são raros, por exemplo, os casos em que diários pessoais são transformados em livros, que se tornam sucessos editoriais, são traduzidos para vários idiomas e vendem milhões e milhões de exemplares, esgotando edições após edições. Isso pode ocorrer (e ocorre) por várias razões: ou pela exatidão dos fatos registrados para exclusivo uso particular, ou pelo estilo de redação ou pelo valor histórico ou por vários outros tantos motivos cuja citação é até desnecessária.
Aliás, de diário eu entendo – ou pelo menos acredito entender – já que, desde 1987, mantenho rigoroso, meticuloso e constante registro da minha vida, sem falhar um único dia – e faço isso sem nenhuma intenção de torná-lo peça de Literatura. O objetivo específico e único é o de “refrescar” a memória, que sei ser tão frágil e traiçoeira, para quando pretender citar, literalmente, algum fato de passado já remoto em alguma das minhas tantas crônicas (estas sim com intenção literária), e fazê-lo com rigor e exatidão. Embora não contenham nada de comprometedor, não gostaria de ver esses registros íntimos bisbilhotados, publicados e muito menos divulgados. Mas meu diário me é bastante útil, já que, como jornalista, lido com fatos e fui treinado a relatá-los com a maior veracidade possível.
Nem sempre, é verdade, esse tipo de registro prima pela utilidade. Não raro, não passa de ingênuo desabafo, quando não de infantis devaneios de garotinhas que experimentam a primeira paixão amorosa da vida. Creio que as mulheres, em especial as adolescentes na faixa dos 13 aos 17 anos, são as que mais recorrem a esse expediente. Experimentem ler, sem sua autorização, um desses diários! Essa inconfidência resultará, certamente, em uma inimizade “eterna” por parte de quem teve a intimidade violada. Não recomendo a nenhum bisbilhoteiro que se atreva a bisbilhotar esses cadernos tão íntimos.
Mas, como ia dizendo, às vezes tais registros tão particulares extrapolam seus objetivos originais e únicos e se transformam em livros. Foi o que aconteceu com a jovem Zlata Filipovic. Provavelmente esse nome é familiar ao leitor bem informado. Caso não seja, permitam-me informar-lhes de quem se trata. E, para quem a conheça, nunca é demais refrescar a memória, não é mesmo?.
A guerra civil da Bósnia – que durante mais de meio século integrou a federação da Iugoslávia – foi um drama, relativamente recente, ocorrido quando esse Estado federativo socialista se desagregou e resultou na criação de seis ou sete (não me recordo agora) novos países. O sangrento e perverso conflito freqüentou as manchetes internacionais por um bom tempo, mais especificamente entre 1990 e 1994. Entre tantas coisas ruins que ensejou (e põe ruim nisso!), porém, gerou algo de bom: propiciou o aparecimento de uma espécie de Anne Frank contemporânea, posto que dos Balcãs. Refiro-me, e vocês certamente já perceberam, exatamente a Zlata Filipovic.
Na oportunidade, esta hoje bacharelada em ciências humanas pela Universidade de Oxford, com mestrado na área de saúde pública em estudos da paz internacional pelo Trinity College, em Dublin, estava com apenas dez anos de idade. Era menininha esperta, observadora e aplicada. Residia em Sarajevo e registrou, em seu diário, o dia a dia de uma cidade sitiada, submetida a constantes (e intermináveis) bombardeios, onde a vida, claro, perdeu qualidade e as ruas, outrora movimentadas e cheias de saudável agitação, típicas de uma grande metrópole européia, se transformaram em um lugar sumamente perigoso, em autênticas “sucursais do inferno”.
Durante três anos, tudo o que a menina viu, ouviu e sentiu, foi meticulosamente registrado. Frise-se que Zlata não foi a única criança de Sarajevo a manter esses registros. Várias outras o fizeram. Tanto que o Unicef apelou às que mantinham diários que os mostrassem aos seus professores, instruídos, por seu turno, a selecionarem os melhores, com vistas à publicação. E o de Zlata foi o que mais impressionou a todos, pela exatidão, pela coerência, clareza e até estilo. Foi, pois, selecionado para ser publicado em julho de 1993.
Desde então, ela passou a ostentar o apelido de “Anne Frank de Sarajevo”. Seu diário foi lançado em livro, inicialmente, em Paris. O sucesso foi tão grande, e imediato, que a editora Viking Penguin/Penguin Books lançou-o nos Estados Unidos, onde também se transformou em best-seller. No Brasil o lançamento coube à Editora Companhia das Letras. O destino de Zlata, todavia, foi muito diferente (para melhor, óbvio) do que o de Anne Frank.
O editor francês de seu livro providenciou a remoção dela e da família para a França, livrando-os do inferno da guerra civil. De lá ela seguiu para a Grã-Bretanha, onde pôde completar os estudos e obter oportunidades que em seu país certamente não obteria jamais. Hoje, perto de completar 32 anos (nasceu em 3 de dezembro de 1980) é conferencista das mais requisitadas, narrando, sucessivamente, suas dramáticas experiências de infância para atentas e curiosas platéias de várias partes da Europa.
A família de Anne Frank, que era judia, por sua vez, fugiu de Frankfurt, na Alemanha, para Amsterdã, na Holanda, logo após a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em janeiro de 1933. O pai, Otto, montou uma pequena indústria de alimentos, em sociedade com os Van Daan, judeus holandeses. O sótão, onde a menina se abrigou por quase dois anos, com a família, começou a ser construído no número 263 da Rua Prinsengrachr, em maio de 1940, quando a Alemanha invadiu a Holanda.
Eles decidiram esconder-se nesse camuflado abrigo quando os nazistas publicaram uma ordem de prisão contra Margot, a irmã mais velha da menina, em 6 de julho de 1942. Na oportunidade, Anne tinha 13 anos. Os Frank (e os Van Daan, que se juntaram a eles mais tarde) só deixaram a casa em 4 de agosto de 1944, quando foram presos pelos nazistas, após uma denúncia. Nesse tempo, a adolescente escreveu seu célebre diário, que “batizou” de Kity (o de Zlata foi batizado de Mimmy). Ambos contêm as impressões de menininhas prodígios, praticamente crianças, sobre a desumanidade da guerra, a rotina na prisão domiciliar e, no caso da garotinha judia, sobre seu amor platônico pelo jovem Peter van Daan.
Da família Frank, apenas o pai sobreviveu à guerra. Aliás, foi ele o responsável pela publicação do diário da filha, que se tornou best-seller mundial, além de sucesso de bilheteria, quando a história foi transposta para as telas de cinema. Anne Frank e os demais companheiros do longo confinamento no tal sótão de Amsterdã morreram no campo de concentração de Bergen Belsen, em março de 1945, semanas antes da morte de Adolf Hitler e da rendição da Alemanha nazista. Ela e a irmã Margot contraíram tifo e não resistiram.
O livro da menina bósnia foi publicado com o título: “Diário de Zlata: a vida de uma criança em Sarajevo”. É leitura que recomendo. Aliás, a recomendação é a de que leiam as duas obras, que contêm relatos aterradores e reflexões de causarem inveja a muitos marmanjos que aspiram a ser escritores, mas que “tropeçam”, invariavelmente, na mesmice.
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