O jogo de símbolos
Pedro J. Bondaczuk
As obsessões de um dos meus principais “gurus” literários, Jorge Luís Borges, se constitui num dos meus temas preferenciais, sobre o qual não me canso de escrever. Já redigi, entre crônicas e ensaios, o equivalente a um livro, desses volumes bem grossos, de 600 páginas ou mais e estou longe, muito distante, de esgotar o assunto. Por isso, é provável que em determinadas ocasiões tenha me tornado repetitivo, expressão que prefiro trocar por outra, “quase” equivalente, mas que é característica da minha profissão de jornalista, ou seja, reiterativo.
O que é importante merece reiteração, até para fixar conceitos e “marcar território” do ponto de vista literário. Para refrescar a memória dos leitores, transcrevo esta declaração do próprio Borges, que já transcrevi em “n” ocasiões, mas que entendo ser oportuno reiterar: “Na verdade, tudo isso corresponde a obsessões de minha infância. Os espelhos, os labirintos, os tigres, as armas brancas. E creio que isso é tudo, não tenho outros temas”. Nesse ponto, discordo dele. Não sei se o “tempo” foi ou não outra obsessão borgiana, mas o fato é que ele permeia, de uma forma ou de outra, toda a sua obra, quer a poética, quer a ensaística, quer a de seus marcantes e memoráveis contos.
Querem um exemplo? Cito, meio que a esmo, alguns de seus livros em que o tema se faz presente no próprio título. São os casos de “Historia de La noche” (poesia, 1978), “La memória de Shakespeare” (contos, 1983), “Historia de La eternidad” (ensaios, 1936) e “Historia universal de La infâmia” (ensaios, 1935). Na verdade o tema se faz presente em praticamente toda a sua vasta obra, ora ostensivamente, ora de maneira velada.
É possível que Borges não o tenha caracterizado como uma de suas obsessões por não ter sido obcecado por ele na “infância”, como nos demais casos que mencionou. É até provável que nunca tenha se dado conta disso. Afinal, nem sempre identificamos ou admitimos, ou sequer sabemos o que está guardado nos substratos mais íntimos da nossa mente, no inconsciente e no subconsciente. Quem sabe nunca tenha classificado sua preocupação com o tempo como obsessão. Mas que este foi tema constante e recorrente em sua obra, é facílimo de comprovar. Basta ler seus livros. Não tenho a menor dúvida a respeito.
Volto a tocar no assunto, porque tempo e espelho são duas das três obsessões literárias que tenho desde a infância e que antecedem, portanto, minha leitura de qualquer dos tantos livros de Borges que li (a terceira é a dos labirintos, esta sim por sua influência). Tanto que intitulei uma das minhas publicações recentes de “Cronos” (simbolizado pelo relógio) e “Narciso” (cujo símbolo, para mim, é o espelho). São dois temas que não faltam em praticamente nenhum dos meus textos, quer na poesia, quer na crônica, no conto ou em ensaio.
Borges justificou assim sua obsessão por espelhos: “Recordo que havia no meu quarto de menino uma cômoda com três espelhos. Eu me via triplicado nesses espelhos e tinha medo de me ver diferente em algum deles”. Da minha parte, não consigo identificar a causa de ser obcecado por esse tema (e nem pelo do tempo). O fato é que, mesmo à minha revelia, sempre que redijo algum texto literário, ambas obsessões afloram, vêm, invariavelmente, à tona e, quando me dou conta, lá estão os dois presentes, com constância e com rigorosa assiduidade.
Mas, em vez de tentar racionalizar e explicar minhas fixações, prefiro citar trechos das obras de Borges sobre um desses temas recorrentes, no caso o dos espelhos. Certamente o leitor terá muito maior proveito dessas citações do que das minhas elucubrações. Pincei em um de seus ensaios, por exemplo, esta singela explicação: “Já nos acostumamos com os espelhos. Ainda assim, existe algo de temível nessa duplicação visual da realidade”. No seu livro “Elogio da sombra – Um ensaio autobiográfico”, encontrei esse trecho do poema “Cambridge”, em que ele escreve:
“...Somos nossa memória,
somos esse quimérico museu de formas
inconstantes,
esse montão de espelhos rotos”.
Querem mais? Pois transcrevo este poema extraído de “A rosa profunda”, em que Borges diz:
Sou
“Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada”.
Como se nota, no poema estão presentes o espelho, o labirinto e... o tempo. Isso só comprova, no que se refere a este último tema, minha tese sobre as obsessões borgianas. Ou seja, a de que elas não são, apenas, as que ele mencionou. Finalmente, para encerrar estas reflexões, partilho com vocês este belíssimo poema em que Borges volta a se referir a espelho:
Os Meus Livros
“Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre”.
Espelhos, labirintos, tigres, punhais e... o tempo, no final das contas, mesmo sendo concretos, quando explorados, em literatura, não passam de símbolos. Pergunto-me: o que não é? Tomamo-los não pelo que são, extrinsicamente, mas pelo que representam abstratamente. A propósito, deixo a última palavra a cargo de Borges, que escreveu: “O mundo inteiro é um jogo de símbolos e todas as coisas significam outra coisa”. E não é?!!!
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