Trabalhando duro para
sobreviver
Pedro
J. Bondaczuk
A Literatura, no
Brasil, ainda é (e sempre foi) considerada “o patinho feio” da cultura
nacional. Sequer é, oficialmente, profissão. Nossos escritores (salvo
raríssimas exceções) não conseguem sobreviver só com a parca e incerta
remuneração advinda da venda de seus livros, não importa a quantidade que
publiquem. Nunca conseguiram. Todos têm que exercer (e exerceram) outras
atividades remuneradas, ligadas ou não às letras, para assegurar o sustento.
Alguns atuam profissionalmente no jornalismo (desconfio que a maioria), tendo a
Literatura como uma espécie de “bico”, quando não de hobby. Outros tantos
advogam, ou exercem a medicina, ou são engenheiros, ou lecionam, ou são
servidores públicos (municipais, ou estaduais ou federais) e vai por aí afora.
Escritores como Carlos
Drummond de Andrade, Mário Quintana, Moacyr Scliar e João Guimarães Rosa, para
citar apenas alguns casos que me vêm de imediato à memória, tiveram que
trabalhar duro, em outras funções, para se manter, a despeito da reconhecida
qualidade literária dos seus livros. Casos como os de Paulo Coelho e Jorge
Amado são rigorosas raridades, absolutas exceções. Para o leitor ter uma idéia
de como a Literatura é tratada nos círculos oficiais, recomendo a leitura do
contundente artigo do jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota,
intitulado “Crítica ao Plano Nacional de Cultura”. É um descaso só, e de todos
os governos, não importa quais, como se essa atividade fosse mero passatempo e não
algo tão fundamental para nossa formação e nossa vida.
Nem mesmo nosso maior
escritor de todos os tempos, Machado de Assis, escapou dessa sina. A despeito
de sua (hoje) reconhecida genialidade, teve que trabalhar, e muito, para se
sustentar. Para que o leitor tenha uma idéia disso, basta informar que assumiu
seu primeiro emprego formal com apenas dezesseis anos de idade, quando deveria
estar estudando, por obra e graça do irrequieto e polêmico Francisco de Paula
Brito. Foi contratado como aprendiz de tipógrafo. Desenvolveu, na sequência,
exemplar carreira no funcionalismo público, onde atuou por longos e estafantes
41 anos, mesmo depois de já ser famoso e consagrado, reconhecido como o grande
escritor que foi. Era reconhecido, mas não remunerado. Não podia sobreviver
“só” com a venda de seus livros.
Ainda aos dezesseis
anos, Machado de Assis foi admitido no serviço público, na humilde função de
aprendiz de tipógrafo e revisor na Imprensa Nacional, encarregada de publicar o
Diário Oficial da União. Seu “padrinho” e protetor foi um também escritor que,
a despeito do enorme sucesso do seu romance “Memórias de um sargento de
milícia”, não conseguia sobreviver da venda desse best-seller. Refiro-me a
Manoel Antonio de Almeida, que via naquele adolescente raquítico, gago e
doentio imenso potencial literário. Acertou na mosca, não é mesmo? Vá ter olho
clínico assim na.... Deixa pra lá!
Não sei se Machado de
Assis foi funcionário público concursado ou não. Creio que na época sequer se
exigia qualquer concurso para ser servidor. O fato é que passou por várias
secretarias, teve muitas promoções e serviu com tamanha dedicação o governo que
o empregou, que chegou a ser condecorado. Não fez, portanto (como tantos e
tantos fazem ainda hoje) do serviço público mero “cabide de emprego”. Levou
sempre a sério as funções para as quais foi designado, não importa suas
dimensões ou importância.
Recorro aos préstimos
do professor e imortal da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinicios
Rodrigues Vilaça, que em seu esclarecedor artigo, intitulado “Machado de Assis
e a política” (publicado no “Diário de Pernambuco” em 17 de julho de 2007),
observou, a propósito: “Quero testemunhar algo muito em particular. Sou, como
ele de certa forma o foi, membro de uma Corte de Contas, já centenária, o que
no Brasil conta muito. Machado de Assis foi por 41 anos modelar funcionário
público e apetecia a ele tarefas que hoje são nomeadas como de Controle
Interno. Exerceu, entre outras tantas bem diversificadas, funções dessa
natureza no Ministério de Obras Públicas. Não era esse o nome. Mas vá lá que
seja para simplificar. É bom ver em papéis antigos o servidor público Machado
de Assis desempenhar-se metodicamente do controle de contas dos que adquiriram
lápis grafite, réguas de ébano, pó da Pérsia, cânfora, papel para embrulho,
envelope para cartas”. Era, como se vê, meticuloso, concentrado, atento,
rigoroso, assíduo e, sobretudo, competente servidor.
Vilaça observa um
aspecto particular digno de nota: “Na obra machadiana o funcionário público
sempre comparece sob a sua mordacidade, como mediocrão, relapso, incompetente,
preguiçoso, exatamente o contrário do que ele foi. Rascunhava despachos antes
de pô-los no papel, impugnava contas inadequadas, conteve gastos sem previsão
orçamentária”. E por que Machado de Assis tinha em tão má conta seus colegas de
serviço público? Ora, ora, ora... É preciso explicitar?
Destaque-se que se
tratava de um gênio das letras. E para ser o fantástico escritor que foi, tinha
que ser implacável observador. E Machado foi e dos melhores. Não lhe escapavam,
portanto, os vícios e mazelas de boa parte dos funcionários (estes mesmos que
conhecemos de sobejo hoje em dia). Óbvio que não se deve generalizar. Se todo
servidor fosse relapso e incompetente, estaríamos num mato sem cachorro. É
preciso separar, pois, o joio do trigo. Mas que havia, no tempo de Machado de
Assis (e há hoje) muito “chupim” apadrinhado, que cai de pára-quedas em
determinadas funções que não entende lhufas, isso há de fato, e em enorme
quantidade. Afirmo isso não por ouvir dizer, mas por experiência própria, por
haver observado de perto e constatado essas, e tantas outras distorções.
Machado de Assis
escreveu, certa feita: “Há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em
ser simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e sobretudo sem
arrependimento”. E ele foi excelente em tudo o que fez e o que foi. Não tinha,
pois, razão alguma para se arrepender do que quer que fosse. Deixou-nos, isto
sim, preciosíssimas lições não só de como fazer literatura de primeira
qualidade, mas de como viver com grandeza e dignidade, mesmo tendo contra si
inúmeros fatores adversos, como ser alvo de preconceito por sua origem social
(era neto de escravos num tempo em que a escravidão estava em plena vigência),
falta de títulos acadêmicos e uma saúde sumamente frágil que não lhe impediu,
contudo, de trabalhar muito, quer escrevendo, quer participando com competência
e assiduidade da administração pública.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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