Sunday, July 05, 2015

Trabalhando duro para sobreviver

Pedro J. Bondaczuk

A Literatura, no Brasil, ainda é (e sempre foi) considerada “o patinho feio” da cultura nacional. Sequer é, oficialmente, profissão. Nossos escritores (salvo raríssimas exceções) não conseguem sobreviver só com a parca e incerta remuneração advinda da venda de seus livros, não importa a quantidade que publiquem. Nunca conseguiram. Todos têm que exercer (e exerceram) outras atividades remuneradas, ligadas ou não às letras, para assegurar o sustento. Alguns atuam profissionalmente no jornalismo (desconfio que a maioria), tendo a Literatura como uma espécie de “bico”, quando não de hobby. Outros tantos advogam, ou exercem a medicina, ou são engenheiros, ou lecionam, ou são servidores públicos (municipais, ou estaduais ou federais) e vai por aí afora.

Escritores como Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Moacyr Scliar e João Guimarães Rosa, para citar apenas alguns casos que me vêm de imediato à memória, tiveram que trabalhar duro, em outras funções, para se manter, a despeito da reconhecida qualidade literária dos seus livros. Casos como os de Paulo Coelho e Jorge Amado são rigorosas raridades, absolutas exceções. Para o leitor ter uma idéia de como a Literatura é tratada nos círculos oficiais, recomendo a leitura do contundente artigo do jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota, intitulado “Crítica ao Plano Nacional de Cultura”. É um descaso só, e de todos os governos, não importa quais, como se essa atividade fosse mero passatempo e não algo tão fundamental para nossa formação e nossa vida.

Nem mesmo nosso maior escritor de todos os tempos, Machado de Assis, escapou dessa sina. A despeito de sua (hoje) reconhecida genialidade, teve que trabalhar, e muito, para se sustentar. Para que o leitor tenha uma idéia disso, basta informar que assumiu seu primeiro emprego formal com apenas dezesseis anos de idade, quando deveria estar estudando, por obra e graça do irrequieto e polêmico Francisco de Paula Brito. Foi contratado como aprendiz de tipógrafo. Desenvolveu, na sequência, exemplar carreira no funcionalismo público, onde atuou por longos e estafantes 41 anos, mesmo depois de já ser famoso e consagrado, reconhecido como o grande escritor que foi. Era reconhecido, mas não remunerado. Não podia sobreviver “só” com a venda de seus livros.

Ainda aos dezesseis anos, Machado de Assis foi admitido no serviço público, na humilde função de aprendiz de tipógrafo e revisor na Imprensa Nacional, encarregada de publicar o Diário Oficial da União. Seu “padrinho” e protetor foi um também escritor que, a despeito do enorme sucesso do seu romance “Memórias de um sargento de milícia”, não conseguia sobreviver da venda desse best-seller. Refiro-me a Manoel Antonio de Almeida, que via naquele adolescente raquítico, gago e doentio imenso potencial literário. Acertou na mosca, não é mesmo? Vá ter olho clínico assim na.... Deixa pra lá!

Não sei se Machado de Assis foi funcionário público concursado ou não. Creio que na época sequer se exigia qualquer concurso para ser servidor. O fato é que passou por várias secretarias, teve muitas promoções e serviu com tamanha dedicação o governo que o empregou, que chegou a ser condecorado. Não fez, portanto (como tantos e tantos fazem ainda hoje) do serviço público mero “cabide de emprego”. Levou sempre a sério as funções para as quais foi designado, não importa suas dimensões ou importância.

Recorro aos préstimos do professor e imortal da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça, que em seu esclarecedor artigo, intitulado “Machado de Assis e a política” (publicado no “Diário de Pernambuco” em 17 de julho de 2007), observou, a propósito: “Quero testemunhar algo muito em particular. Sou, como ele de certa forma o foi, membro de uma Corte de Contas, já centenária, o que no Brasil conta muito. Machado de Assis foi por 41 anos modelar funcionário público e apetecia a ele tarefas que hoje são nomeadas como de Controle Interno. Exerceu, entre outras tantas bem diversificadas, funções dessa natureza no Ministério de Obras Públicas. Não era esse o nome. Mas vá lá que seja para simplificar. É bom ver em papéis antigos o servidor público Machado de Assis desempenhar-se metodicamente do controle de contas dos que adquiriram lápis grafite, réguas de ébano, pó da Pérsia, cânfora, papel para embrulho, envelope para cartas”. Era, como se vê, meticuloso, concentrado, atento, rigoroso, assíduo e, sobretudo, competente servidor.

Vilaça observa um aspecto particular digno de nota: “Na obra machadiana o funcionário público sempre comparece sob a sua mordacidade, como mediocrão, relapso, incompetente, preguiçoso, exatamente o contrário do que ele foi. Rascunhava despachos antes de pô-los no papel, impugnava contas inadequadas, conteve gastos sem previsão orçamentária”. E por que Machado de Assis tinha em tão má conta seus colegas de serviço público? Ora, ora, ora... É preciso explicitar?

Destaque-se que se tratava de um gênio das letras. E para ser o fantástico escritor que foi, tinha que ser implacável observador. E Machado foi e dos melhores. Não lhe escapavam, portanto, os vícios e mazelas de boa parte dos funcionários (estes mesmos que conhecemos de sobejo hoje em dia). Óbvio que não se deve generalizar. Se todo servidor fosse relapso e incompetente, estaríamos num mato sem cachorro. É preciso separar, pois, o joio do trigo. Mas que havia, no tempo de Machado de Assis (e há hoje) muito “chupim” apadrinhado, que cai de pára-quedas em determinadas funções que não entende lhufas, isso há de fato, e em enorme quantidade. Afirmo isso não por ouvir dizer, mas por experiência própria, por haver observado de perto e constatado essas, e tantas outras distorções.

Machado de Assis escreveu, certa feita: “Há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em ser simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e sobretudo sem arrependimento”. E ele foi excelente em tudo o que fez e o que foi. Não tinha, pois, razão alguma para se arrepender do que quer que fosse. Deixou-nos, isto sim, preciosíssimas lições não só de como fazer literatura de primeira qualidade, mas de como viver com grandeza e dignidade, mesmo tendo contra si inúmeros fatores adversos, como ser alvo de preconceito por sua origem social (era neto de escravos num tempo em que a escravidão estava em plena vigência), falta de títulos acadêmicos e uma saúde sumamente frágil que não lhe impediu, contudo, de trabalhar muito, quer escrevendo, quer participando com competência e assiduidade da administração pública.


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