A possível inspiradora
de Capitu
Pedro
J. Bondaczuk
A atuação de Machado de
Assis como compositor foi, apenas, ocasional. Foi, diria, só questão de
oportunidade. Depreendo, da leitura das muitas fontes que consultei, que em
momento algum lhe passou, mesmo que remotamente, pela cabeça atuar nesse campo
artístico. Ou seja, ele nunca se considerou “compositor”. Algumas vezes sua atuação se deu para atender
convite dos seus muitos amigos músicos. Raras de suas “letras” foram escritas
especificamente para serem interpretadas como canções, ou seja, para serem
cantadas. Aliás, algumas eram, na verdade, poemas, publicados em seu livro
“Falenas”, que ganharam roupagem musical: ritmo, harmonia e melodia. E nenhuma
se consagrou como composição e nem caiu no gosto quer da elite intelectual,
quer (e muito menos) do povão. Perpetuaram-se, mesmo, como poesia pura, que de
fato eram.
Em outra parte desta
série de comentários destaquei que a primeira experiência de Machado de Assis
como letrista se deu em 1863, com a composição da letra do “Hino Patriótico”,
cuja música coube ao maestro Júlio José Nunes. Teve, neste caso, diria, caráter
“filantrópico”, ou promocional. A letra foi publicada, em forma de anúncio, com
ilustrações do artista Henrique Fleiuss, na “Semana Ilustrada”. O produto da
venda dessa edição específica do jornal seria (e foi) destinado à campanha de
arrecadação de fundos para a aquisição de armas para o então desprovido Exército
Brasileiro, pelo fato do nosso País estar envolvido na chamada “Questão
Christie”, com o poderoso Império Britânico e ameaçado, inclusive, de ataque
militar por parte da então única superpotência global.
A segunda letra que
Machado de Assis compôs, dois anos mais tarde, em 1865, foi para o “Hino da
Arcádia”, sociedade lítero-musical que ele fundou e que teve curta duração. A
música coube ao espanhol José Zapata y Amat. Para muitos, esse seu parceiro era
uma espécie de exilado político que teria se envolvido em encrencas em sua
terra natal, a Espanha. Todavia, é injusto que seja lembrado, apenas, como uma
espécie de agitador. Diga-se, a seu favor, que além de bom compositor, era o
maior empresário de música clássica do Rio de Janeiro de então. Para lhe fazer
justiça, é mister que se lembre que foi o criador de ativíssima companhia de
ópera na cidade.
Outra composição de
Machado de Assis, que citei, foi a letra da valsa “Lua da estiva noite”, em
parceria com seu amigo, e parceiro de xadrez, Arthur Napoleão dos Santos.
Mencionei, ainda, de passagem, “Coração triste”, com Alberto Nepomuceno.
Todavia, para encerrar esse assunto, que trato mais a título de curiosidade do
que como aspecto de importância na vida de Machado de Assis, cito o caso de
“Lágrimas de cera”. Faço-o tanto pelo seu parceiro, quanto pelo fato de que
pode ter sido a fonte de inspiração para a construção de sua mais famosa e
polêmica personagem: Capitu. Antes de tudo, vou logo explicando que não se
tratou, propriamente, de uma letra, composta especificamente com essa
finalidade. Foi, isso sim, um poema, publicado no livro “Falenas”.
Não sei de quem partiu
a ideia de musicar essa peça literária, se de Machado de Assis ou se do maestro
que a musicou. E este, qualquer brasileiro, minimamente atento, conhece.
Trata-se de Francisco Braga. Esse nome não lhe sugere nada, atento leitor? Pois
deveria. Pense bem. Sim, é ele mesmo, o autor do “Hino à Bandeira”. Sua
biografia deveria ser melhor divulgada (na verdade deveria pelo menos ter
“alguma” divulgação, já que nunca teve nenhuma) por ser das mais exemplares. O
músico foi mais um desses tantos brasileiros que, contra tudo e contra todos,
se impuseram pelo talento. De origem bastante humilde, foi, entre outras
dificuldades, vítima de preconceito racial (arraigado, infelizmente, ainda hoje
na sociedade brasileira) por causa da cor da sua pele: era mulato, assim como
Machado de Assis.
Mas Francisco Braga,
clarinetista, era um sujeito lutador e, sobretudo, dotado de enorme talento.
Tanto que, concorrendo com músicos notáveis e, diga-se de passagem, bem
“apadrinhados”, superou a todos e obteve o primeiro lugar em um concurso, cujo
prêmio era uma bolsa de estudos no renomado Conservatório de Paris. Porém esse
não é o principal motivo (embora seja um deles) que me levou a destacar essa
composição específica. A razão é mesmo sua letra (na verdade poema do livro
“Falenas”, reitero). Nela, Machado de Assis faz referência a uma mulher, com a
consciência pesada por determinada culpa (que o autor não revela qual) que vai
a uma igreja, na esperança de expiá-la. Está profundamente arrependida, mas
diante do altar não chora, talvez para não atrair a atenção de ninguém, embora
sinta irresistível vontade de chorar. Em vez disso, acende uma vela, cuja cera,
ao derreter-se, “chora por ela”.
Muitos analistas da
obra machadiana vêem, nessa mulher do poema, a verdadeira Capitu, que sabe
dissimular sentimentos e não manifesta publicamente que se sente culpada ou que
esteja indignada com incabíveis suspeitas alheias sobre eventual culpa que não
tenha. É tão enigmática quanto a tão polêmica personagem de “Dom Casmurro”. Se
é fato ou mera especulação dos estudiosos é impossível saber. Pessoalmente,
entendo que se trate, apenas, de coincidência, embora não bote minha mão no
fogo por tal versão. Em “Lágrimas de Cera” Machado de Assis diz, em determinado
trecho:
“… Da vela benta que
ardera,
Como tranqüilo fanal
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.
Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, a chama a
arder
Chorar é que não
podia”.
Como amante tanto da
boa música, quanto da obra de Machado de Assis (e, por razões até pessoais,
sobretudo de sua poesia), gostaria de poder ouvir “Lágrimas de Cera” cantada,
na voz de algum dos tantos excelentes cantores que aprecio. A melodia deve ser
uma lindeza, a julgar, por exemplo, pela melodia do nosso magnífico “Hino à
Bandeira” de Francisco Braga. Mesmo sem nunca ter ouvido essa canção, suponho
ser marcante e memorável, dado o talento dos parceiros. Está aí a sugestão para
algum promotor cultural inteligente e de bom gosto. Que tal gravar, e promover
nos meios de comunicação, “Lágrimas de Cera”?!!! Ou será que Machado de Assis e
Francisco Braga não merecem esse investimento, mesmo que seja arriscado?! Quem
sabe, isso até poderia dirimir a dúvida se a mulher que fez a vela chorar por
ela tem, ou não tem, qualquer coisa a ver com a enigmática Capitu.
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