Machado de Assis e a
Questão Christie
Pedro
J. Bondaczuk
A atuação de Machado de
Assis como compositor – de letras, obviamente, e sempre em parceria com músicos
famosos em sua época – posto que incidental (porquanto não consta que estivesse
cogitando, sequer remotamente, em abandonar a carreira literária), é um aspecto
da sua vida que me chama, em particular, a atenção. Pincei, em várias fontes (e
há uma fartura delas), três ou quatro casos que no meu entender merecem ser
contados e comentados com mais vagar, por terem, como panos de fundo, histórias
que justificam sua decisão. Sobre o primeiro deles, apenas me reservo o direito
de fazer menção, sem mais comentários, por haver tratado dele em texto
anterior. Não quero ser redundante. Refiro-me à composição da letra do hino
oficial da Arcádia Fluminense – sociedade litero-cultural fundada em 1865 por
Machado de Assis – tendo por parceiro o músico espanhol José Zapata y Amat.
Todavia, esta não foi
sua estréia como compositor. A primeira letra, pelo que apurei em minhas
fontes, foi feita em 1863, para o “Hino Patriótico”, tendo como parceiro o
maestro Júlio José Nunes, então na “crista da onda”, por haver regido, tempos
atrás, a ópera “A noite do castelo”, de Antonio Carlos Gomes, na ocasião uma
estrela em ascensão depois de haver caído nas graças do imperador Dom Pedro II.
Pitoresco foi o fato de Machado de Assis, tido e havido por seus detratores
como “antinacionalista” e que revelaria, tempos depois, em sua obra, inegável
influência cultural inglesa, estrear na música, como compositor, justamente
para defender o Brasil da então toda poderosa Inglaterra, senhora dos sete
mares, império tão vasto que dele se dizia que em suas fronteiras o sol jamais
se punha. E não se punha mesmo. Era a única superpotência da época, papel
idêntico ao que os Estados Unidos exercem hoje.
Pois é, nosso país
então sumamente “jovem”, com somente 39 anos de vida independente, que em
termos de força militar não passava de humilde Davi diante do poderoso gigante
Golias, estava em pé de guerra com o reino comandado pela Rainha Vitória, com o
qual havia rompido relações diplomáticas. Tudo por causa do que passou para a
História com o nome de “A Questão Christie”, Acho estranho o fato desse
dramático episódio ser tão mal tratado nos dias atuais (creio que sempre foi
assim) em nossas escolas. Raríssimos estudantes sabem do que se tratou. Bem,
como esta não é uma aula de História, resumirei, rapidamente, sem dar muitos
detalhes, no que o incidente consistiu.
A contenda com a
Grã-Bretanha iniciou-se em 1861. Foi batizada com o nome do embaixador britânico
no Rio de Janeiro à época, William Dougal Christie. O caso é que o diplomata
reagiu com indignação à prisão de marinheiros de seu país acusados de arruaça
no Rio de Janeiro – brigaram com marinheiros brasileiros por causa de mulheres,
todos, provavelmente, bêbados feito gambás. Em nome de sua majestade, a Rainha
Vitória, ele exigiu a demissão dos policiais responsáveis pelas detenções.
Aproveitou o embalo para pedir, também, indenização pela carga de um navio
recém-naufragado na então Província do Rio Grande do Sul, o Prince of Wales,
supostamente saqueada pela população local.
A batalha diplomática,
frise-se, durou anos. Ao fim e ao cabo, o Brasil venceu a questão. O rei da
Bélgica, escolhido como árbitro para o “imbróglio”, deu ganho de causa ao governo
brasileiro. Antes disso, porém, os ânimos se exaltaram, de parte a parte. A
Marinha da Grã-Bretanha, então a mais poderosa do mundo, chegou a prender cinco
navios mercantes brasileiros. E foi além: ameaçou bombardear o Rio de Janeiro,
apontando seus poderosos canhões para a cidade. A população, claro, ficou em
polvorosa. Foi tomada, sobretudo, de insensatos pruridos patrióticos,
compreensíveis, mas nada práticos. Para
ajudar o país a enfrentar o superior Exército britânico, em uma eventual guerra
armada (até então ela era, somente, diplomática) o povo brasileiro organizou
gigantescas manifestações de protesto por todo o País, sobretudo na capital do
Império. Várias promoções foram feitas para arrecadar fundos, visando a compra
de armamentos para nossas Forças Armadas.
É nesse contexto que
entra o “Hino Patriótico”, cuja letra foi composta por Machado de Assis. Uma
das tantas manifestações, ocorridas já em 1863, teve como palco o Teatro
Ginásio. Foi ali que a tal composição foi apresentada, com pompa e circunstância.
Seus versos figuraram anônimos, em forma de anúncio, no periódico “Semana
Ilustrada” de 18 de janeiro de 1863. Até o título foi outro: “Hino dos
Voluntários”. O produto da venda de certo número de exemplares do jornal, com
ilustrações do artista Henrique Fleiuss, seria destinado, pelos autores, à
subscrição nacional em favor de armamentos. Machado, como autor da letra, foi
identificado apenas mais tarde, e nas páginas de dois outros jornais, o “Diário
do Rio de Janeiro” e o “Correio Mercantil” do dia 21 de janeiro e não do que
organizou a promoção. No Teatro Ginásio, o hino foi, primeiro, recitado, e
depois, cantado, pela atriz Emília Adelaide, então muito famosa no Rio de
Janeiro. O estribilho dizia:
“Brasileiros! Haja um
brado
Nesta terra do Brasil
Antes a morte de
honrado
Do que a vida infame e
vil”
E numa das estrofes,
Machado de Assis identificou o inimigo pelo nome:
“Pela liberdade ufana
Ufana de honradez
Esta terra americana
Bretão, não te beija os
pés”.
Quem disse, pois, que
Machado de Assis era antinacionalista e que considerava ridículos os arroubos
patrióticos, tanto os seus quanto os da população? Aos 24 anos, pelo menos, não
era como muitos o pintaram e como alguns o pintam ainda hoje. Só se, por acaso,
ele mudou e se tornou assim na maturidade ou na velhice, no que não creio. Era
patriota sim. Mas da maneira correta, inteligente e lúcida: sem abrir mão,
jamais. do senso crítico, pautando-se pela razão, em detrimento da selvagem e
ingovernável paixão, ou seja da emoção sem pé e nem cabeça, que geralmente
mobiliza as massas não pela compreensão, mas tomadas, somente, pelo tão
conhecido “efeito manada”.
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