Thursday, July 09, 2015

Disputa por comida



Pedro J. Bondaczuk


O grau de extrema miséria em que vivem quase 50 milhões de brasileiros chega a ser indecente, indecência essa apenas superada pela deslavada indiferença com que os bem aquinhoados encaram esses infelizes excluídos. Não raro se ouve atribuir a miserabilidade dessas pessoas à sua suposta indolência, preguiça, ou mesmo irresponsabilidade. São tratadas como se "quisessem" vegetar à margem da sociedade, sem acesso nem mesmo a migalhas de comida, quanto mais à saúde, educação e, por conseqüência, a um bom emprego, razoavelmente remunerado. Não querem, evidentemente!

Serviço, quando aparece para essa gente, é braçal, rude, de bestas de carga, e pessimamente remunerado (quando pagam). Recebem alguns trocados, que lhes são dados com cara de nojo e arrogância. Essas pessoas são tratadas com o maior menosprezo. O serviço que conseguem é aquele que ninguém quer fazer. Na maior parte das vezes, nem isso logram obter. Quem não se sujeita a pedir, se humilhando, abrindo mão da dignidade, descamba logo para a violência, a marginalidade, o banditismo (homens) ou para a prostituição (mulheres). Em nenhum dos casos, por razões diferentes, esses infelizes têm vida longa.

Pessoas que raciocinam, vêem um sentido grandioso na vida e lutam para construir um mundo um pouquinho melhor, lêem, certamente, com asco matérias como a publicada na edição passada do Notícia Metropolitana, abordando o grau de abandono e de extrema miséria de aproximadamente 200 famílias (cerca de 800 pessoas) que se espremem nas ocupações Renascença 2 (São Geraldo) e Beira Rio, na zona Norte de Campinas. Nojo, evidentemente, não desses brasileiros sofredores, vítimas de um perverso "apartheid" social, mas de quem permite que haja seres humanos vegetando em tamanha indigência. E sente impotência por não poder fazer nada para acabar com tanto sofrimento.

O que causa pasmo, é que a maioria dos que fecham os olhos a essa tragédia social se diz cristã! Sem trabalho (e portanto sem remuneração), essas pessoas comem o que aparece (quando aparece). Chegam, como destaca a citada reportagem, a disputar comida com os porcos. E, nos lixões, com os urubus e os ratos. Lamentável! Vergonhoso! E há quem reclame quando se escancaram situações como essas na imprensa. Acusam os jornalistas de "sensacionalistas", por veicularem matérias "de tamanho mau gosto". E essa gente ainda consegue dormir! Não tem consciência!

A fome é terrível. No desespero de mitigá-la, o faminto não escolhe o que comer. Tanto faz que seja lixo ou sopa de papelão. Ambos tendem a intoxicar do mesmo jeito! Com cenas como estas, bem debaixo dos nossos narizes, que credibilidade têm nossos governantes para virem a público, através dos meios de comunicação, apregoar a suposta "modernidade" brasileira? Que modernidade?! A dos excluídos? A dos garimpeiros do lixo? Como podem dizer que a vida melhorou no País depois do Plano Real? Melhorou para quem?

Diante de tudo isso, faço minhas as palavras de Millôr Fernandes, no encerramento da sua coluna de domingo passado, no suplemento "Mais!" da Folha de S. Paulo, ao abordar os protestos em Gênova, contra a tal da "globalização" econômica, durante a reunião anual do Grupo dos Oito realizada naquela cidade italiana: "Ou agora se decide de uma vez por todas que, pelo simples fato de nascer, o ser humano tem direito a um mínimo de comida, de abrigo, de educação, de diversão, ou essa p....explode". E explode tarde!

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do jornal Notícia Metropolitana, em 7 de agosto de 2001).

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