Thursday, July 09, 2015

Machado de Assis e a escravidão

Pedro J. Bondaczuk

A maior crítica a Machado de Assis (se não for a única, é uma das raríssimas que lhe fazem) feita (felizmente) por pouquíssimas pessoas, é a de que, supostamente, nosso maior escritor teria dado pouca importância à questão da escravidão no Brasil em sua vasta e eclética obra, tanto a jornalística, quanto (e principalmente) a literária. Atribuo essa postura (que insisto, é rara) ou à ignorância - à falta de informação a propósito do teor dos livros, das crônicas e dos artigos em jornais e revistas que ele publicou – ou a um camuflado preconceito racial pelo fato dele ser mulato e neto de escravo, ou a ambos (o que é mais provável). Sequer citarei qualquer desses “críticos” para não dar cartaz a quem não merece.

Para quem não sabe, ou não percebeu, ou ainda não se deu conta de “quanto” e de “como” nosso Bruxo do Cosme Velho tratou do tema da escravidão em sua vasta e eclética obra, recomendo a leitura da antologia “Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo” (Editora Pallas e Crisálida).. Trata-se de coletânea que reúne poemas, contos, crônicas e ficção romanesca em que o escritor carioca aborda, direta ou indiretamente, a temática e, de quebra, as absurdas relações inter-raciais no Brasil do século XIX. Para facilitar o entendimento de determinadas nuances, o livro contém, além de um ensaio, notas explicativas do responsável pela seleção dos textos, o professor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

Portanto, só acusam Machado de Assis de não tratar da escravidão os que desconhecem sua obra, ou os que conhecem (mal e porcamente) um ou outro dos seus livros, geralmente romances, lidos ás pressas, sem a devida atenção que tal leitura requer, atentando, apenas, aos enredos. É certo que ele não foi, propriamente, um “abolicionista” clássico, desses que escreviam textos candentes, mas meramente retóricos, com pouco ou nenhum conteúdo que, certamente, cairiam em ouvidos moucos, porquanto os únicos, em seu tempo, capacitados a ler o que quer que fosse eram, justamente, os grandes senhores de escravos. Ele não era um panfletário, um propagandista, um populista, mas escritor e jornalista.

Quanto aos potenciais leitores, imaginem quantos (e quem) eles poderiam ser!!! A quantidade de analfabetos que havia no País no século XIX era absurda! Estatísticas (nem um pouco confiáveis) indicam que a média nacional de analfabetismo girava ao redor dos 75%. Acho contestável essa cifra se levarmos em conta que já na metade do século XX (portanto, um “ontem” em termos históricos) esse percentual ainda orbitava em torno dos 60% ou mais. Mesmo supondo que tal taxa fosse verdadeira (no que, absolutamente não creio), convenhamos, não deixava de ser “estratosférica”. Machado de Assis, portanto, por força das circunstâncias, escrevia para uma elite e das mais reduzidas e intelectualmente despreparadas. Ainda assim... não se omitiu.

Se você for jornalista, desafio-o a escrever um candente artigo que seja completamente contrário à linha editorial do jornal em que trabalha. Talvez, e por descuido, ele venha a ser publicado. Se o for, porém, tão certo quanto dois mais dois são quatro, no dia seguinte você será chamado à sala do editor-chefe para receber o clássico “bilhete azul”. Certamente, será demitido. E quem vocês acham que sustentava os jornais do Rio de Janeiro, do século XIX, em que Machado de Assis trabalhava? Seriam ferrenhos abolicionistas, contrários á nojenta e absurda prática da escravidão? Ora, ora, ora. Eram ricos fazendeiros, com senzalas abarrotadas de escravos. Eram comerciantes, que tinham farta quantidade de servos, considerados, até por lei, como “mercadorias” e não como pessoas. E, ainda assim, Machado de Assis encontrou forma, elegante, inteligente, diria genial de condenar prática tão nefasta e imoral.

Leiam, com atenção, sua obra para se convencer. Concordo com o teor de um texto, que colhi na Wikipédia, que observa:  “Castro Alves escrevia sobre a violência explícita a que os escravos estavam expostos, enquanto Machado de Assis escrevia as violências implícitas, como a dissimulação e a falsa camaradagem na relação senhor e escravo”. Leiam, por exemplo, os contos “O caso da vara” e “Pai contra mãe”, em que ele trata, especificamente, da questão de forma a chocar qualquer pessoa minimamente sensível, pelo tanto de realismo e, sobretudo, de verossimilhança que têm.

Mas essas histórias não foram as únicas. Poderia citar “Virginius”, por exemplo, ou “Mariana”, entre tantos e tantos e tantos outros contos. Leiam, com atenção redobrada, o romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Nele, Machado de Assis apresenta um comportamento escravista que nunca vi ninguém tratar, mas que existia, era real, era cruel, era fruto de uma mentalidade cristalizada: a de um negro liberto, que compra seu próprio escravo, para tirar desforra do seu tempo de escravidão. Em praticamente todos seus romances, ele traz, de uma forma ou de outra, mesmo que incidentalmente, o tema à baila. Isso é detectável em “Ressurreição”, “Helena”, “Iaiá Garcia”, “Memórias póstumas de Brás Cubas” (que destaquei), “Quincas Borba”, “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e, finalmente, seu derradeiro “Memorial de Aires”.

Ademais, Machado de Assis não se limitou a criticar a escravidão e a batalhar pelo seu fim. Atuou em sentido prático – posto que fora da Literatura e do Jornalismo – pela liberdade de homens e mulheres escravizados. Graças à sua ação, milhares e milhares deles se tornaram cidadãos livres. O professor Eduardo Assis Duarte explica como foi essa ação: “(...) Trabalhou por vários anos na segunda seção da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura, órgão que se ocupava justamente da política de terras e do acompanhamento da aplicação da Lei do Ventre Livre, e que chegou a ser dirigida pelo escritor (...) a essa secretaria deve-se a liberdade de milhares de escravos, liberdade que provinha da fiscalização vigilante dos dinheiros públicos, e da qual resultava grande aumento do número de alforrias pela diminuição do exagerado valor do escravo, pela irregularidade de matrículas e não cumprimento de preceitos legais”. Portanto, Machado não discursou, não esbanjou retórica vazia e nem se limitou a condenar o que por si só é imoral e sumamente condenável: agiu!!”


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