A música na obra de
Machado de Assis
Pedro
J. Bondaczuk
A música é assunto
onipresente na vasta e eclética obra de Machado de Assis, quer na ficcional
(romances e contos), quer em suas crônicas e críticas de arte. Desconheço
(embora não afirme que não haja) a existência de qualquer outro escritor
(brasileiro ou não), que tenha atribuído tanta importância e tratado com
tamanha insistência, em quantidade mesmo que remotamente parecida, dessa
manifestação artística. Discordo, todavia, dos que caracterizam essa
recorrência temática como “obsessão”. Não chega a tanto. E mesmo que fosse,
seria louvável, não é mesmo? Afinal, o que seria do mundo, tão violento e
perigoso, sem a existência da música? Seria, certamente, no mínimo, muito mais
triste e sem graça do que já é.
Peço licença, ao
paciente leitor, para fazer algumas citações que, creio, não somente ilustrarão
como, sobretudo, esclarecerão o tema. Há tantas opiniões – convergentes ou
divergentes à minha – e não apenas no que se refere a esse aspecto particular
da obra de Machado de Assis, mas a tantos e tantos outros, que, mesmo a
contragosto, me vejo induzido a citá-las. Creiam-me que não se trata de nenhum
arroubo de vaidade de minha parte, muito menos de eventual exibição pedante de
erudição, como posso ser acusado. Tomara que não seja. Feito o esclarecimento,
vamos ao que interessa.
O professor, crítico
literário e um dos maiores especialistas na obra machadiana, o inglês John
Gledson, escreveu, na detalhada introdução do livro “Contos: uma antologia, Machado
de Assis” (Companhia das Letras, 1998) que organizou: “Não chega a ser
obsessivo, mas pode-se dizer que a música
é um tema recorrente na obra de Machado de Assis”. Como se vê, trata-se
de conclusão convergente à minha, embora sua insistência leve muitos a
desconfiarem que seja, mesmo, obsessão. No caso, mantenho a ressalva que fiz
acima, ou seja, a de que, mesmo que se trate disso (o que, reitero, entendo que
não é), não se seria algo ruim, doentio e maníaco.
A seguir, Gledson entra
direto no assunto e cita alguns contos (no caso, trata, especificamente, desse
gênero) em que Machado de Assis se refere à música para ilustrar seus enredos.
Escreve: “Ora é na forma de um piano que o personagem toca; ora o machete
(espécie de cavaquinho), ou mais genericamente uma melodia que perpassa e
colore o ambiente onde os personagens ‘vivem’. Isso pode se constatar no conto
‘Cantiga de esponsais’, em que a obsessão de um virtuose toma a narrativa por
inteiro, ou em ‘Marcha fúnebre’, em que um personagem simplesmente assobia uma
polca ao atravessar uma rua; ou em ‘Trio em lá menor’,,,”. A seguir, analisa
este último conto, todo ele construído em torno de “figuras musicais”, como
“Adagio cantabile”, “Allegro ma non troppo”, “Allegro appassionato” e “Menuetto”. Quem está familiarizado com
música sabe, de sobejo, do que se trata. E certamente não deixa de ficar
maravilhado com tão pitoresca e original analogia.
Há dezenas de outros
contos em que a música, de uma forma ou de outra, se faz presente, como “Aurora
sem dia”, “Um erradio”, “Vênus! Divina Vênus!”, “O programa”, “Uma por outra”,
“A chinela turca”, “Um homem célebre”, “O machete” e vai por aí afora. Não
pode, portanto, tratar-se de mera coincidência. Para escrever com tamanha
constância, pertinência e desenvoltura a propósito, deduz-se que Machado de
Assis deveria dominar muito bem o tema. Não consta, todavia, que ele soubesse
tocar qualquer instrumento. Creio que não sabia e não tocava nenhum. Todavia,
tinha profundo conhecimento de teoria musical. Se não tivesse, como poderia
tratar com confiança e naturalidade do assunto? Não poderia!
Mas não é somente nos
contos que a música se faz presente nos enredos de Machado de Assis.
Encontramo-la, por exemplo, no romance “Esaú e Jacó”, quando a personagem Flora
toca piano e, numa transcendência mental provocada pela melodia, une, em
pensamento, os dois irmãos, Pedro e Paulo, antagonistas em todas as coisas e em
todos os aspectos. Está presente em “Memorial de Aires”. E aparece, com muito
mais força, em “Dom Casmurro”. Aliás, Machado de Assis dedica-lhe um capítulo
inteiro desse romance, o IX, intitulado “A Ópera”, ao assunto. Nele apresenta,
na fala do personagem Marcolini (tenor decadente e já “sem voz”), esta
afirmação: “... A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono
lutam pelo soprano em presença do baixo e dos comprimários. Há coros numerosos,
muitos bailados, e a orquestração é excelente...”;
Esclarecedora é esta
observação do professor Leonardo Francisco Soares, da Universidade Federal de
Minas Gerais, na monografia “A ópera aberta”: “Na cosmogonia de Marcolini, Deus
é o poeta que escreveu um libreto de ópera, do qual abre mão, por entender que
tal criação não é própria de sua eternidade. Satanás é o jovem músico de grande
futuro, mas que, ao tramar uma rebelião, é expulso do conservatório do céu. Ao
sair, Satanás leva consigo, para o inferno, o manuscrito abandonado. Com o
objetivo de provar o seu valor, ele compõe a partitura e a leva ao ‘Padre
Eterno’, que se recusa a ouvir o trabalho. Todavia, após as intermináveis
súplicas de Satanás, Deus, ‘cansado e cheio de misericórdia’, consente que a
ópera seja encenada, mas fora do céu. Assim, ele cria um teatro especial – o
nosso planeta – e inventa uma companhia inteira, com todas as partes, protagonistas
e coadjuvantes’”. Este, como se vê, é um resumo muito bom do capítulo IX de
“Dom Casmurro”.
O pensamento de Machado
de Assis, sobre esta nobilíssima arte, fica perfeitamente explicitado nesta
outra declaração, colocada na boca do tenor Marcolini: “Tudo é música, meu
amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o
novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o
pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…” E não cabe?
Bem, que Machado de Assis
manteve estreita relação com a música, creio ter deixado relativamente claro,
nestes breves comentários. Que ela aparece, a todo instante, em seus contos e
romances, regendo o ritmo da narrativa, também acredito que não restem mais
dúvidas, embora haja muitas (e põe muitas nisso!) coisas a acrescentar. Que
publicou nos jornais inúmeras críticas musicais e traduziu libretos de óperas,
tudo isso também se sabe. Uma coisa, porém, que pouca gente sabe é que Machado
escreveu letras para modinhas, valsas e outras formas de música popular da sua
época. Ou seja, que foi compositor. E isso é tão pouco tratado, que merece
capítulo a parte.
No comments:
Post a Comment