Friday, July 17, 2015

A música na obra de Machado de Assis

Pedro J. Bondaczuk

A música é assunto onipresente na vasta e eclética obra de Machado de Assis, quer na ficcional (romances e contos), quer em suas crônicas e críticas de arte. Desconheço (embora não afirme que não haja) a existência de qualquer outro escritor (brasileiro ou não), que tenha atribuído tanta importância e tratado com tamanha insistência, em quantidade mesmo que remotamente parecida, dessa manifestação artística. Discordo, todavia, dos que caracterizam essa recorrência temática como “obsessão”. Não chega a tanto. E mesmo que fosse, seria louvável, não é mesmo? Afinal, o que seria do mundo, tão violento e perigoso, sem a existência da música? Seria, certamente, no mínimo, muito mais triste e sem graça do que já é.

Peço licença, ao paciente leitor, para fazer algumas citações que, creio, não somente ilustrarão como, sobretudo, esclarecerão o tema. Há tantas opiniões – convergentes ou divergentes à minha – e não apenas no que se refere a esse aspecto particular da obra de Machado de Assis, mas a tantos e tantos outros, que, mesmo a contragosto, me vejo induzido a citá-las. Creiam-me que não se trata de nenhum arroubo de vaidade de minha parte, muito menos de eventual exibição pedante de erudição, como posso ser acusado. Tomara que não seja. Feito o esclarecimento, vamos ao que interessa.

O professor, crítico literário e um dos maiores especialistas na obra machadiana, o inglês John Gledson, escreveu, na detalhada introdução do livro “Contos: uma antologia, Machado de Assis” (Companhia das Letras, 1998) que organizou: “Não chega a ser obsessivo, mas pode-se dizer que a música  é um tema recorrente na obra de Machado de Assis”. Como se vê, trata-se de conclusão convergente à minha, embora sua insistência leve muitos a desconfiarem que seja, mesmo, obsessão. No caso, mantenho a ressalva que fiz acima, ou seja, a de que, mesmo que se trate disso (o que, reitero, entendo que não é), não se seria algo ruim, doentio e maníaco.

A seguir, Gledson entra direto no assunto e cita alguns contos (no caso, trata, especificamente, desse gênero) em que Machado de Assis se refere à música para ilustrar seus enredos. Escreve: “Ora é na forma de um piano que o personagem toca; ora o machete (espécie de cavaquinho), ou mais genericamente uma melodia que perpassa e colore o ambiente onde os personagens ‘vivem’. Isso pode se constatar no conto ‘Cantiga de esponsais’, em que a obsessão de um virtuose toma a narrativa por inteiro, ou em ‘Marcha fúnebre’, em que um personagem simplesmente assobia uma polca ao atravessar uma rua; ou em ‘Trio em lá menor’,,,”. A seguir, analisa este último conto, todo ele construído em torno de “figuras musicais”, como “Adagio cantabile”, “Allegro ma non troppo”, “Allegro appassionato” e  “Menuetto”. Quem está familiarizado com música sabe, de sobejo, do que se trata. E certamente não deixa de ficar maravilhado com tão pitoresca e original analogia.

Há dezenas de outros contos em que a música, de uma forma ou de outra, se faz presente, como “Aurora sem dia”, “Um erradio”, “Vênus! Divina Vênus!”, “O programa”, “Uma por outra”, “A chinela turca”, “Um homem célebre”, “O machete” e vai por aí afora. Não pode, portanto, tratar-se de mera coincidência. Para escrever com tamanha constância, pertinência e desenvoltura a propósito, deduz-se que Machado de Assis deveria dominar muito bem o tema. Não consta, todavia, que ele soubesse tocar qualquer instrumento. Creio que não sabia e não tocava nenhum. Todavia, tinha profundo conhecimento de teoria musical. Se não tivesse, como poderia tratar com confiança e naturalidade do assunto? Não poderia!

Mas não é somente nos contos que a música se faz presente nos enredos de Machado de Assis. Encontramo-la, por exemplo, no romance “Esaú e Jacó”, quando a personagem Flora toca piano e, numa transcendência mental provocada pela melodia, une, em pensamento, os dois irmãos, Pedro e Paulo, antagonistas em todas as coisas e em todos os aspectos. Está presente em “Memorial de Aires”. E aparece, com muito mais força, em “Dom Casmurro”. Aliás, Machado de Assis dedica-lhe um capítulo inteiro desse romance, o IX, intitulado “A Ópera”, ao assunto. Nele apresenta, na fala do personagem Marcolini (tenor decadente e já “sem voz”), esta afirmação: “... A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano em presença do baixo e dos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...”;

Esclarecedora é esta observação do professor Leonardo Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais, na monografia “A ópera aberta”: “Na cosmogonia de Marcolini, Deus é o poeta que escreveu um libreto de ópera, do qual abre mão, por entender que tal criação não é própria de sua eternidade. Satanás é o jovem músico de grande futuro, mas que, ao tramar uma rebelião, é expulso do conservatório do céu. Ao sair, Satanás leva consigo, para o inferno, o manuscrito abandonado. Com o objetivo de provar o seu valor, ele compõe a partitura e a leva ao ‘Padre Eterno’, que se recusa a ouvir o trabalho. Todavia, após as intermináveis súplicas de Satanás, Deus, ‘cansado e cheio de misericórdia’, consente que a ópera seja encenada, mas fora do céu. Assim, ele cria um teatro especial – o nosso planeta – e inventa uma companhia inteira, com todas as partes, protagonistas e coadjuvantes’”. Este, como se vê, é um resumo muito bom do capítulo IX de “Dom Casmurro”.

O pensamento de Machado de Assis, sobre esta nobilíssima arte, fica perfeitamente explicitado nesta outra declaração, colocada na boca do tenor Marcolini: “Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…” E não cabe?

Bem, que Machado de Assis manteve estreita relação com a música, creio ter deixado relativamente claro, nestes breves comentários. Que ela aparece, a todo instante, em seus contos e romances, regendo o ritmo da narrativa, também acredito que não restem mais dúvidas, embora haja muitas (e põe muitas nisso!) coisas a acrescentar. Que publicou nos jornais inúmeras críticas musicais e traduziu libretos de óperas, tudo isso também se sabe. Uma coisa, porém, que pouca gente sabe é que Machado escreveu letras para modinhas, valsas e outras formas de música popular da sua época. Ou seja, que foi compositor. E isso é tão pouco tratado, que merece capítulo a parte.


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