Tuesday, July 21, 2015

Filósofo sem complicações

Pedro J. Bondaczuk

O que há neste mundo que se possa dizer verdadeiramente verdadeiro? Tudo é conjetural”. Esta é uma (das tantas) afirmações filosóficas na obra de Machado de Assis. Mas não se trata, é mister esclarecer, desta Filosofia de hoje, burocrática, eivada de jargões e de idéias confusas e esotéricas, acessível, apenas, a um número ínfimo de pessoas. Quantos a entendem realmente mundo afora? Quantos lêem suas principais obras e as compreendem? Você se interessa, caríssimo leitor, por essa Filosofia, digamos, formal? Com todo o preparo intelectual que tem, compreende, minimamente, o que dizem seus principais luminares? Caso a resposta seja afirmativa, você é um gênio.

Reputo Machado de Assis como filósofo, sim, e dos mais lídimos, lúcidos e sábios, embora nunca tenha sido classificado como tal. Afinal, não se ligou a nenhuma corrente de pensamento, a nenhuma escola específica, a nenhum dos tantos “ismos” que pululam por aí e que caracterizam o que deveria ser, até por definição, “estudo da vida”, mas...  Todavia nosso principal escritor  transitou, com naturalidade, por todas filosofias, expurgando delas o lado teórico, simplificando conceitos, definindo-os com clareza e objetividade e fazendo da “mãe de todas as ciências” o que ela sempre deveria ser. Ou seja, permanente tentativa do homem para responder, sobretudo, pelo menos as três questões básicas que o desafiam desde que se deu conta de que contava com a prerrogativa de pensar: “O que sou? Onde estou? Para onde vou?”

Machado de Assis extraiu conclusões sobre a vida, o homem, o mundo, o universo, além de especular, ou conjeturar, como queiram, sobre sua origem, destino e possível finalidade, de forma objetiva, clara, descomplicada e acessível a qualquer pessoa de instrução mediana. Quanto ao que concluiu, na citação acima, há, em tal conclusão, algum exagero ou impropriedade? Fala-se, a todo o momento, e nos mais variados contextos, sobre “verdade”. Mas, o que ela é, ao fim e ao cabo? Existe alguma que seja única, soberana e absoluta, cercada de consenso por sua clareza e obviedade e que não comporte desmentidos? Qual? O que se nota é que a verdade de hoje é (salvo exceções) a mentira, ou o equívoco de amanhã, desmentida por novas proposições. O que era verdadeiro, por exemplo, há um, dois ou três séculos, hoje ninguém ousa afirmar que o seja, sob pena de cair em ridículo  Por que isso acontece? Porque a apregoada “verdade” não passou de mera conjetura. Concordo, portanto, com Machado: “Tudo é conjetural”. 

Em sua obra (de ficção e na de não-ficção) há reiterado questionamento sobre o homem na sociedade e sobre o homem diante de si próprio. Isso não é Filosofia? Ora, ora, ora. Cito, como outro exemplo, o "Humanitismo", elaborado pelo personagem filósofo Joaquim Borba dos Santos no romance “Quincas Borba”. Nele perpassa a ideia "do império da lei do mais forte, do mais rico e do mais esperto". Não é assim que as coisas funcionam na maioria ou até na totalidade das sociedades? Machado de Assis vai mais longe. Antonio Candido observou que a essência do pensamento machadiano é "a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual". O que foi a escravidão, se não isso? O que são as injustiças sociais em relação à classe trabalhadora, qual o fulcro da eterna briga entre capital e trabalho se não a submissão e conseqüente exploração do mais fraco pelo mais forte? Os poderosos transformaram, ou não, o homem em “objeto do homem”?

É certo que o "Humanitismo" de Machado foi uma sátira ao positivismo de Auguste Comte (filósofo que empolgou os republicanos em fins do século XIX, tanto que o lema de nossa bandeira foi inspirado em sua filosofia). Mas não só. Aproveitou o embalo para ironizar, igualmente, o cientificismo do seu tempo, em especial a teoria de Charles Darwin sobre “seleção natural” da espécie. Pela “voz” de Quincas Borba, o “Bruxo do Cosme Velho” expressou o conceito de que "a ascensão de um se faz a partir da anulação do outro". Poderia ter expressado tudo isso mediante complicadas teorias, eivadas de jargões, desses de enlouquecer qualquer leitor. Não fez isso, todavia. Voltou às origens da “mãe de todas as ciências e expressou conceitos complexos que tantos outros expressaram de forma esotérica com clareza, objetividade e com o delicioso tempero da ironia.

Reputo o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” como autêntico manual de Filosofia. Pincei algumas citações que comprovam, sobejamente, minha afirmação. Como esta: “Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obriga a gente a catar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz a consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo”. Ou como esta: “Os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens”. Ou como esta outra: “A vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas”.

Querem mais? Lá vai: “Invenções há que se transformam ou acabam, as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de Ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre (...). “Um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas (...) “O vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã (...) “Tolera-se uma superstição gratuita ou barata; é insuportável a que leva uma parte da vida (...) “Que profundas são as molas da vida! (...) “Matamos o tempo; o tempo nos enterra (...) “Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte”. Como se vê, filósofo. Sábio e prático filósofo, que resgatou, um pouco, da essência da Filosofia.


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