País
em guerra civil
Pedro J. Bondaczuk
O Brasil vive uma virtual guerra civil nas ruas, nos
bares, nos becos e cortiços de suas principais cidades. É um conflito não
admitido, sem líderes, sem bandeiras e sem objetivos. É caótico. Chega a passar
despercebido. Mas seus resultados são terríveis, pois ceifa mais vidas a cada
ano do que as que foram perdidas na Bósnia-Herzegovina, na Chechênia e no
Afeganistão, para citar os casos mais óbvios e recentes verificados no mundo.
Trata-se da violência urbana ou, mais
especificamente, da quantidade espantosa e absurda de homicídios que se
verificam todos os dias, em todas as camadas sociais, pelas razões mais pueris
e banais, nas principais cidades do País.
Apenas no ano passado, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) reconheceu 47 mil assassinatos em todo o Brasil.
Estes, evidentemente, foram os caracterizados no Direito Penal como
"crimes dolosos", ou seja, os que o autor tinha a intenção de
cometer.
Se forem juntados a esses números os chamados
"culposos" – que resultam em mortes por negligência, imprudência e
imperícia – essa quantidade de homicídios dobra ou até mesmo triplica.
Milhares de cidadãos são mortos anualmente nas
estradas intransitáveis desse imenso País, ou nas ruas das principais
metrópoles, por uma dessas três razões (quando não todas simultaneamente).
São motoristas inabilitados (imperitos), ou relapsos
(negligentes) ou no mínimo irresponsáveis (imprudentes), que fazem de seus
carros uma arma, um instrumento de risco, um símbolo de ostentação de poder. E
raros, raríssimos desses criminosos recebem alguma forma de punição, por causa
de uma legislação inadequada, arcaica e cheia de falhas.
Morrem assassinados, por ano, no Brasil, mais
pessoas do que o número total de soldados norte-americanos mortos na guerra do
Vietnã, por exemplo. E as causas dessa enorme, dessa absurda, dessa surrealista
violência – que joga por terra o mito do "homem cordial" que se criou
em torno do brasileiro – são as mais variadas.
É uma ingenuidade atribuir esse estado de coisas tão
somente a questões sócio-econômicas, embora não se possa negar que estas tenham
um enorme peso. As razões vão desde um Código Penal há muito ultrapassado
– que considera o beijo em local público
um repulsivo ato obsceno passivo de punição e o porte ilegal de armas mera
contravenção – aos desníveis sociais tão profundos a ponto de tornar a nossa
sociedade a mais injusta do mundo.
Os números da violência, quando reunidos e
comparados com os de outras grandes metrópoles mundiais, são preocupantes e
assustadores. Por exemplo, em Buenos Aires, foram registrados, em 1995, 190
homicídios. Ou seja, um a cada dois dias, em média. Esses assassinatos
constituíram-se na 12ª causa de morte.
No mesmo período, em São Paulo, 8.436 pessoas
morreram assassinadas. Foram 23 por dia, em média. Os homicídios foram a 3ª
causa de morte. À primeira vista, para um analista desavisado, pode representar
um número não tão alto. Mas a análise muda de figura quando se constata que em
Nova York, a média diária de assassinatos chegou a menos de 3.
E ainda assim foi considerada intolerável, a ponto
de levar as autoridades municipais, estaduais e federais norte-americanas a
empreenderem uma verdadeira cruzada de desarmamento e de conscientização. Até
um "placar", registrando os homicídios cometidos, foi instalado em um
ponto central da cidade. Imprensa e sociedade uniram-se para reduzir esses
índices de violência que consideravam intoleráveis e conseguiram cortar essa
cifra diária quase à metade.
Outra comparação que se pode fazer é interna, com o
Rio de Janeiro, tido e havido como a mais violenta metrópole brasileira, em
decorrência do domínio dos principais morros por quadrilhas de
narcotraficantes. Diariamente, a violência carioca tem freqüentado o noticiário
de rádio, televisão e jornais do País e do Exterior.
No entanto, em 1995, o número de homicídios nessa
cidade foi de 7.300 (média de 20 por dia) contra os 8.436 de S„o Paulo (média
de 23). Neste ano, o desnível tornou-se ainda maior. Enquanto o obituário do
Rio caiu cerca de 30%, o da capital paulista subiu praticamente no mesmo
porcentual.
A guerra civil da Bósnia, sangrenta e sem dúvida
dramática, que comoveu o mundo pelo tanto de sofrimento que causou, produziu um
número estimado de 200 mil mortes em 40 meses. Ou seja, uma média diária em
torno de 17 pessoas.
O conflito na Chechênia deixou cerca de 100 mil
mortos, de acordo com recente balanço divulgado pelo Ministério de Defesa da
Rússia. Coincidentemente, a média diária de mortes foi praticamente a mesma
verificada nos Bálcãs: de 17. Enquanto isso, São Paulo registrou 23! E isso sem
nenhuma "limpeza étnica" (mas talvez a "social") e sem
despertar nenhuma mobilização, sequer a interna!
A grande maioria desses homicídios não foi cometida
por marginais, por perigosos bandidos ou ousados e cruéis assaltantes. Esses
crimes foram, em boa parte, praticados por cidadãos comuns. É certo que o
álcool e as drogas tiveram decisiva contribuição para essas mortes. Mas em São
Paulo mata-se pelos motivos mais banais, como discussões sobre o futebol, e até
mesmo sem nenhuma razão.
O jornalista e advogado Ib Teixeira, em um artigo
publicado na última quinta-feira no jornal "O Globo" do Rio,
intitulado "Débil `lex...sed lex': as raízes de nossa guerra",
constata: "A legislação que vê no beijo um crime devidamente configurado é
a mesma que se mostra extremamente benevolente com o homicida. De fato, à luz
do art.310 do CP caso mate alguém, mesmo preso em flagrante, o homicida pode
conseguir a liberdade provisória. De resto, como adverte o jurista Aldo
Taglialegna, `se quiser, poderá assistir aos funerais da vítima'. Se condenado,
apelará em liberdade, assim permanecendo por tempo indefinido até que ninguém
mais recorde o acontecido".
Essa tibieza da legislação penal é, senão um
estímulo, pelo menos um "sinal verde" para o crime. No Brasil,
conforme observa Id Teixeira, "o homicídio parece coisa de somenos",
quando na verdade é o pior delito que um homem poderia cometer, já que nada
justifica a supressão da vida de um semelhante.
É certo que o explosivo aumento da população
contribuiu para essa dramática elevação do número de homicídios exatamente na
cidade mais populosa do País e da América Latina e uma das cinco mais povoadas
do mundo. Dobramos o número de nossos habitantes em apenas 25 anos, enquanto a
maioria dos Estados ricos leva até 300 anos para isso.
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, no livro
"Reflexões para o futuro", lançado pela Editora Abril em 1994 para
comemorar os 25 anos da revista "Veja", dá uma das pistas para essa
explosão de violência no País.
Diz: "Nos anos 90, aprendemos que, em sessenta anos
de industrialização, o Brasil havia gerado três categorias sociais --- ricos,
pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe a
minoria rica, branca, sofisticada, formada numa sociedade mais ou menos
comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa e resignada, do
tamanho do México. E há 32 milhões de indigentes, uma Argentina dentro do
Brasil. Esses 32 milhões são brasileiros que o Brasil trata como estrangeiros,
uma população indesejada, descurada, quase inimiga".
O filósofo Herbert Marcuse afirma que "uma
sociedade está doente quando as instituições fundamentais e suas relações (ou
seja, sua estrutura) são de tal natureza que não permitem a utilização dos
meios materiais existentes para o desenvolvimento ideal da existência
humana". A nossa precisa ser tratada, e logo. Caso contrário, nossas
cidades se transformarão, mais e mais, em selvas de pedra, em campos de batalha,
em caminhos minados, em trincheiras, onde um simples passeio pela rua será uma
aventura fatal. Já estão caminhando para isso...
(Artigo publicado na página 3, Opinião, do Correio
Popular, em 11 de outubro de 1996)
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