Sunday, July 12, 2015

País em guerra civil

  
Pedro J. Bondaczuk


O Brasil vive uma virtual guerra civil nas ruas, nos bares, nos becos e cortiços de suas principais cidades. É um conflito não admitido, sem líderes, sem bandeiras e sem objetivos. É caótico. Chega a passar despercebido. Mas seus resultados são terríveis, pois ceifa mais vidas a cada ano do que as que foram perdidas na Bósnia-Herzegovina, na Chechênia e no Afeganistão, para citar os casos mais óbvios e recentes verificados no mundo.

Trata-se da violência urbana ou, mais especificamente, da quantidade espantosa e absurda de homicídios que se verificam todos os dias, em todas as camadas sociais, pelas razões mais pueris e banais, nas principais cidades do País.

Apenas no ano passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reconheceu 47 mil assassinatos em todo o Brasil. Estes, evidentemente, foram os caracterizados no Direito Penal como "crimes dolosos", ou seja, os que o autor tinha a intenção de cometer.

Se forem juntados a esses números os chamados "culposos" – que resultam em mortes por negligência, imprudência e imperícia – essa quantidade de homicídios dobra ou até mesmo triplica.

Milhares de cidadãos são mortos anualmente nas estradas intransitáveis desse imenso País, ou nas ruas das principais metrópoles, por uma dessas três razões (quando não todas simultaneamente).

São motoristas inabilitados (imperitos), ou relapsos (negligentes) ou no mínimo irresponsáveis (imprudentes), que fazem de seus carros uma arma, um instrumento de risco, um símbolo de ostentação de poder. E raros, raríssimos desses criminosos recebem alguma forma de punição, por causa de uma legislação inadequada, arcaica e cheia de falhas.

Morrem assassinados, por ano, no Brasil, mais pessoas do que o número total de soldados norte-americanos mortos na guerra do Vietnã, por exemplo. E as causas dessa enorme, dessa absurda, dessa surrealista violência – que joga por terra o mito do "homem cordial" que se criou em torno do brasileiro – são as mais variadas.

É uma ingenuidade atribuir esse estado de coisas tão somente a questões sócio-econômicas, embora não se possa negar que estas tenham um enorme peso. As razões vão desde um Código Penal há muito ultrapassado –  que considera o beijo em local público um repulsivo ato obsceno passivo de punição e o porte ilegal de armas mera contravenção – aos desníveis sociais tão profundos a ponto de tornar a nossa sociedade a mais injusta do mundo.

Os números da violência, quando reunidos e comparados com os de outras grandes metrópoles mundiais, são preocupantes e assustadores. Por exemplo, em Buenos Aires, foram registrados, em 1995, 190 homicídios. Ou seja, um a cada dois dias, em média. Esses assassinatos constituíram-se na 12ª causa de morte.

No mesmo período, em São Paulo, 8.436 pessoas morreram assassinadas. Foram 23 por dia, em média. Os homicídios foram a 3ª causa de morte. À primeira vista, para um analista desavisado, pode representar um número não tão alto. Mas a análise muda de figura quando se constata que em Nova York, a média diária de assassinatos chegou a menos de 3.

E ainda assim foi considerada intolerável, a ponto de levar as autoridades municipais, estaduais e federais norte-americanas a empreenderem uma verdadeira cruzada de desarmamento e de conscientização. Até um "placar", registrando os homicídios cometidos, foi instalado em um ponto central da cidade. Imprensa e sociedade uniram-se para reduzir esses índices de violência que consideravam intoleráveis e conseguiram cortar essa cifra diária quase à metade.

Outra comparação que se pode fazer é interna, com o Rio de Janeiro, tido e havido como a mais violenta metrópole brasileira, em decorrência do domínio dos principais morros por quadrilhas de narcotraficantes. Diariamente, a violência carioca tem freqüentado o noticiário de rádio, televisão e jornais do País e do Exterior.

No entanto, em 1995, o número de homicídios nessa cidade foi de 7.300 (média de 20 por dia) contra os 8.436 de S„o Paulo (média de 23). Neste ano, o desnível tornou-se ainda maior. Enquanto o obituário do Rio caiu cerca de 30%, o da capital paulista subiu praticamente no mesmo porcentual.

A guerra civil da Bósnia, sangrenta e sem dúvida dramática, que comoveu o mundo pelo tanto de sofrimento que causou, produziu um número estimado de 200 mil mortes em 40 meses. Ou seja, uma média diária em torno de 17 pessoas.

O conflito na Chechênia deixou cerca de 100 mil mortos, de acordo com recente balanço divulgado pelo Ministério de Defesa da Rússia. Coincidentemente, a média diária de mortes foi praticamente a mesma verificada nos Bálcãs: de 17. Enquanto isso, São Paulo registrou 23! E isso sem nenhuma "limpeza étnica" (mas talvez a "social") e sem despertar nenhuma mobilização, sequer a interna!

A grande maioria desses homicídios não foi cometida por marginais, por perigosos bandidos ou ousados e cruéis assaltantes. Esses crimes foram, em boa parte, praticados por cidadãos comuns. É certo que o álcool e as drogas tiveram decisiva contribuição para essas mortes. Mas em São Paulo mata-se pelos motivos mais banais, como discussões sobre o futebol, e até mesmo sem nenhuma razão.

O jornalista e advogado Ib Teixeira, em um artigo publicado na última quinta-feira no jornal "O Globo" do Rio, intitulado "Débil `lex...sed lex': as raízes de nossa guerra", constata: "A legislação que vê no beijo um crime devidamente configurado é a mesma que se mostra extremamente benevolente com o homicida. De fato, à luz do art.310 do CP caso mate alguém, mesmo preso em flagrante, o homicida pode conseguir a liberdade provisória. De resto, como adverte o jurista Aldo Taglialegna, `se quiser, poderá assistir aos funerais da vítima'. Se condenado, apelará em liberdade, assim permanecendo por tempo indefinido até que ninguém mais recorde o acontecido".

Essa tibieza da legislação penal é, senão um estímulo, pelo menos um "sinal verde" para o crime. No Brasil, conforme observa Id Teixeira, "o homicídio parece coisa de somenos", quando na verdade é o pior delito que um homem poderia cometer, já que nada justifica a supressão da vida de um semelhante.

É certo que o explosivo aumento da população contribuiu para essa dramática elevação do número de homicídios exatamente na cidade mais populosa do País e da América Latina e uma das cinco mais povoadas do mundo. Dobramos o número de nossos habitantes em apenas 25 anos, enquanto a maioria dos Estados ricos leva até 300 anos para isso.

O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, no livro "Reflexões para o futuro", lançado pela Editora Abril em 1994 para comemorar os 25 anos da revista "Veja", dá uma das pistas para essa explosão de violência no País.

Diz: "Nos anos 90, aprendemos que, em sessenta anos de industrialização, o Brasil havia gerado três categorias sociais --- ricos, pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe a minoria rica, branca, sofisticada, formada numa sociedade mais ou menos comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa e resignada, do tamanho do México. E há 32 milhões de indigentes, uma Argentina dentro do Brasil. Esses 32 milhões são brasileiros que o Brasil trata como estrangeiros, uma população indesejada, descurada, quase inimiga".

O filósofo Herbert Marcuse afirma que "uma sociedade está doente quando as instituições fundamentais e suas relações (ou seja, sua estrutura) são de tal natureza que não permitem a utilização dos meios materiais existentes para o desenvolvimento ideal da existência humana". A nossa precisa ser tratada, e logo. Caso contrário, nossas cidades se transformarão, mais e mais, em selvas de pedra, em campos de batalha, em caminhos minados, em trincheiras, onde um simples passeio pela rua será uma aventura fatal. Já estão caminhando para isso...



(Artigo publicado na página 3, Opinião, do Correio Popular, em 11 de outubro de 1996)

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