A negritude de Machado
de Assis
Pedro
J. Bondaczuk
O renomado crítico
literário norte-americano Harold Bloom considera Machado de Assis o maior
“escritor negro do mundo, e de todos os tempos”. Situa-o entre os cem grandes
gênios da Literatura e destaca que é, também, um dos grandes injustiçados, pois
o reconhecimento que lhe é tributado não condiz com sua grandeza e genialidade.
Escreve, em determinado trecho do prefácio de seu livro “Gênio: Os 100 autores
mais criativos da história da literatura” (tradução de José Roberto O’Shea;
Revisão de Marta M. O’Shea, publicado no Brasil em 2003 pela Editora Objetiva)
que o escritor brasileiro redigiu sua obra-prima, que para ele é o romance
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” em
um contexto “do Brasil escravagista, ele próprio neto de escravos libertados”.
E pondera: “Porém, Machado, ironista genial, jamais ataca a sociedade
diretamente, mas através de uma comédia astuta e um niilismo intimidante”.
Até aí, tudo bem. Há
praticamente consenso da crítica internacional em torno dessa avaliação de
Harold Bloom. Mas há, também, divergências. Não em relação à sua competência
literária ou à sua genialidade. O “pomo da discórdia” é a “negritude” de
Machado de Assis. Muitos críticos brasileiros e estrangeiros negam que ele se
trate de “escritor negro”, como se isso fosse alguma ofensa, algo que pudesse,
de alguma forma, diminuí-lo. Claro que não diminui. Da minha parte concordo,
embora em parte, com Harold Bloom. Até porque sua negritude é algo que não se
pode negar. O escritor era mulato e neto de ex-escravo. Entendo, todavia, que
esse é um fator a mais para valorizar sua genialidade e não eventual aspecto
negativo. Assino embaixo, portanto, da afirmação do crítico norte-americano de
que Machado de Assis foi “o maior literato negro surgido até o presente”.
O tradutor, também norte-americano
Gregory Rabassa, todavia, contesta a tal negritude do autor de “Memórias
Póstumas de Brás Cubas”. Contudo, não com os argumentos dos racistas. Entende
que o escritor não centrou sua obra em questões raciais (e não centrou mesmo),
antes refletiu a alma e o jeito de ser de todo um povo, indiferente à sua
etnia, à cor da pele dos personagens que criou. Classificou-o como autor “que
traduz a si mesmo”. Considera-o, sobretudo, “sábio”. E concorda,
entusiasticamente, com Harold Bloom quando o inclui entre os grandes da
literatura universal. Neste caso específico, creio que a verdade está no meio.
Ambos mestres estrangeiros estão certos em suas avaliações, dependendo do ponto
de vista que se tome. Se considerarmos a origem étnica de Machado de Assis, Bloom
está corretíssimo em classificá-lo como “negro”. E mais ainda, quando o alça à
condição de o maior escritor afrodescendente do mundo, em todos os tempos.
Todavia, se a análise
tomar como base exclusivamente a temática machadiana, a razão estará com Rabassa.
Este assegura, com pleno conhecimento de causa, que o autor de “Memórias
Póstumas de Brás Cubas” não foi “só” um escritor negro, mas, sobretudo, “um
escritor brasileiro”. Como se vê, a controvérsia é apenas questão de semântica,
de rótulo, podemos assim dizer. É possível que algum leitor desconheça quem é
Gregory Rabassa. Para esses, informo que se trata de renomado tradutor de
escritores latino-americanos para o inglês. Domina com perfeição, além da
língua do seu país, o espanhol e o português. Escritores brasileiros como Jorge
Amado, Clarice Lispector e Machado de Assis devem a ele o fato de se tornarem
conhecidos nos Estados Unidos.
Aos 93 anos de idade
(nasceu em Yonkers, no Estado de Nova York, em 9 de março de 1922), firmou
reputação na sua especialidade. Desde que traduziu “Cem anos de solidão”, de
Gabriel Garcia Marquez, passou a ser conhecido pela alcunha de “O Tradutor”, o
que diz, por si só, de sua competência. É filho de imigrantes cubanos e, em
1967, ganhou o Prêmio Nacional do Livro, pela tradução de “O jogo da
amarelinha”, do argentino Júlio Cortazar.
Apesar da idade avançada, Gregory Rabassa continua ativo como
funcionário do Departamento de Tradução do Queens College, de Nova York.
Todavia, esse profundo
conhecedor da literatura latino-americana (e, portanto, também da brasileira)
não é somente tradutor. É, também, ensaísta e crítico literário. Tem,
inclusive, um livro em português, publicado no Brasil, posto que certamente
esgotado, pois foi lançado por aqui em 1965. Trata-se de obra bastante
significativa intitulada “O negro na ficção brasileira”, que pode ser
encontrada nos melhores “sebos” do País e que recomendo aos amantes da boa
literatura. O próprio título do seu livro sugere que ele é especialista na
matéria. Pode, portanto, opinar de cátedra, de forma abalizada sobre Machado de
Assis e concluir, com maior propriedade do que Harold Bloom, que o Bruxo do
Cosme Velho foi muito mais do que apenas um escritor negro: foi um escritor
brasileiro.
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