A "paz" das armas
Pedro J. Bondaczuk
O
Líbano vive a expectativa de mais um acordo entre as principais milícias que há
dez anos e meio conseguiram transformar o país de uma sociedade exemplar,
citada como modelo sempre que se queria exemplificar a possibilidade de
convivência de grupos étnico-religiosos heterogêneos, num amontoado caótico de
pessoas. Num aglomerado de gente em que não há uma autoridade central,
respeitada como tal. Onde os conflitos passaram a ser decididos "à
valentona", ao arrepio das leis. E onde a vida humana não tem o mínimo
valor, sendo conservada ou perdida ao acaso, na dependência de uma bala
extraviada, de uma granada que mude de direção ou de um carro-bomba que erre o
alvo.
Foram
tantos os acordos negociados e depois rompidos por motivos sem nenhuma
importância, que a euforia das vezes anteriores foi substituída agora por um
cauteloso silêncio. Diríamos, até, por indisfarçável incredulidade. Pois
enquanto os líderes máximos das milícias negociavam ontem, em Damasco, a paz, sob
a supervisão do vice-presidente sírio Halim Khaddam, as armas não silenciavam
em absoluto na linha verde que divide Beirute em dois setores distintos.
Tiroteios esporádicos continuavam atingindo indiscriminadamente quem por ali se
aventurasse, matando uma pessoa e ferindo dez. Para os padrões da capital
libanesa, contudo, foi um dia calmo, quase de marasmo.
A
conclusão óbvia a que o observador chega é que ou os chefes das milícias,
conhecidos no Líbano como "senhores da guerra", não têm tanto
controle quanto pensam sobre os seus liderados, ou foram para a mesa de
negociações com um ânimo nada sincero para negociar. Num caso de conflito
armado, o primeiro passo para qualquer espécie de acordo que restabeleça de vez
a paz é um absoluto cessar-fogo. Uma parada completa nos atos de beligerância
de todas as partes, numa demonstração de absoluta confiança de cada um no
adversário com quem se deseja reconciliar.
Outro
aspecto a se considerar nesse acordo negociado, ainda não divulgado em caráter
oficial, é que uma das facções em luta (ao nosso ver a principal, já que foi
aquela que deu início ao conflito), a palestina, não se fez presente às
negociações. Talvez porque os sírios confiem que tenham sob controle os seus
principais grupos, após promoverem (com sucesso) a divisão dentro da
Organização para a Libertação da Palestina, a fragmentação numa infinidade de
correntes. Mas os recentes combates registrados na que outrora foi a segunda
cidade libanesa, Tripoli, virtualmente arrasada por três semanas de selvagens
confrontações, demonstram que a coisa não é bem assim. E que, infelizmente,
para esse sofrido e boníssimo povo, o libanês, assolado por essa autêntica
doença que afeta alguns organismos nacionais, que é a intolerância, o pesadelo
ainda deverá perdurar por muito tempo. Por quanto, ninguém se atreveria a
prever.
Enquanto
em Damasco é negociado um acordo para o fim das hostilidades, o bandoleirismo
campeia solto em Beirute. A embaixada soviética está sob ameaça de voar pelos
ares e os russos permanecem na iminência de mais uma vez provarem o amargo
veneno do ódio sectário, com três diplomatas seus sob o risco de serem
trucidados, a exemplo do que aconteceu com um quarto, Arkady Atkov, dias atrás.
A missão diplomática da Itália está tendo que reforçar sua segurança, bem como
a britânica, por causa do recente episódio de seqüestro do Achille Lauro e da
desfeita inglesa de anteontem aos palestinos. A cidade continua, mais do que
nunca, terra de ninguém. Se isso for prenúncio de acordo, imagine o leitor
quando acontecer o desacordo total!
(Artigo
publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 16 de outubro de
1985)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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