Mulheres e não
estereótipos
Pedro
J. Bondaczuk
A grande dificuldade
dos ficcionistas masculinos, não importa qual seja sua experiência ou cultura,
é a criação de personagens femininas verossímeis. O desafio, no caso, não é o
de descrevê-las fisicamente. Nesse aspecto, a imensa maioria é aprovada com louvor.
Salvo se for algum principiante, desatento e atrasado que as descreva como
gostaria, ou como não gostaria que fosse, os demais não pecam por excessos. Ou,
pelo menos, não muito. O problema todo está em retratar o perfil psicológico
das mulheres que “criam”. Ou seja, o que pensam, do que gostam, o que sonham
etc.etc.etc. e as respectivas motivações de tudo isso. A tendência, nesse
aspecto, é a de estereotipar personagens femininas. É a de, ora “divinizá-las”,
ora “demonizá-las”, ou seja, a de criar figuras caricatas e irreais, mesmo que
“bonitinhas” (ou horrorosas).
Nesse aspecto, Machado
de Assis foi exceção a essa regra. Poucos escritores criaram tantas personagens
femininas marcantes, dessas que nunca esquecemos, por “cruzarmos” com elas no
nosso dia a dia, que são, agem e pensam como elas, quanto ele. E não me refiro,
apenas, a Capitu, obra-prima de criação literária, que 116 anos após ser
apresentada ao público, ainda segue causando admiração (diria “frisson”) no
público e intrigando leitores, na dúvida jamais esclarecida se essa mulher
enigmática traiu ou não traiu Bentinho. Antes e depois dela, o Bruxo do Cosme
Velho havia criado, e criou, personagens femininos tão ou mais fascinantes que
esta tão especial, quer em seus nove romances, quer em seus mais de duzentos
contos (sem falar nos poemas que escreveu). Não “divinizou” e nem “demonizou”
nenhuma delas. Não as estereotipou. Criou-as exatamente como as mulheres de seu
tempo eram (e como as de hoje são). Também neste aspecto, portanto, foi um fenômeno.
A Literatura Brasileira
está repleta de personagens femininas marcantes. De Jorge Amado, por exemplo,
podemos citar Gabriela, Dona Flor, Tieta e tantas e tantas outras. Érico
Veríssimo, por seu turno, criou Ana Terra e outras tantas mulheres fortes e
corajosas, dessas que ficam retidas na memória e que não esquecemos jamais. Não
podemos esquecer, também, de Diadorim, de João Guimarães Rosa, em “Grande
Sertão, Veredas”, que se traja e age como homem, mas que, ao fim e ao cabo,
cede aos instintos femininos. Poderia citar, ainda, dezenas, centenas, quiçá
milhares de escritores e personagens que ficaram, justamente, marcados na
literatura nacional. Não se afirma, pois, que Machado de Assis seja o único a
criar personagens femininas minimamente verossímeis. Mas, com todo o respeito a
esses autores – tanto aos que citei quanto aos que somente cogitei – nenhum
deles, mas nenhum mesmo, sequer se aproximou, quer em quantidade e quer em
exatidão, do festejado autor de “Dom Casmurro”.
Capitu, por exemplo, é
imbatível em qualquer aspecto que se considere. Literalmente ganha vida na pena
de seu criador. Tem personalidade e mantém dignidade, mesmo sob suspeita de
adultério, que até hoje ninguém tem certeza se foi ou não culpada. É original,
é ímpar, é única em Literatura, posto que na vida real pode ser encontrada aos
milhões, quiçá aos bilhões de mulheres do seu e do nosso tempo. Maria Lúcia
Silveira Rangel escreveu, em texto publicado no nº 17 da “Revista Literária
Brasileira” que Capitu é a “personagem mais discutida, a mais famosa, e seria
repetição falar sobre a grande dúvida em que o escritor deixa o leitor sobre o
adultério da esposa de Bentinho – o romance abre-se num leque com opções a
favor ou contra o fato". E não é?!!
Sofia Alves, em texto
em que opina na excelente enquete do site Homo Literatus sobre “catorze
personagens femininos inesquecíveis” da Literatura mundial, escreve o seguinte sobre a protagonista de
“Dom Casmurro”: “Nele (no romance de Machado de Assis) encontramos a envolvente
e dependente história de amor entre a grande mulher e Bentinho, que se conhecem
desde a infância e que, com o passar do tempo, descobrem o mundo e a si mesmos
em uma relação de constante desconfiança e possessividade. A notabilidade de
Capitu, enquanto mulher, é observada desde muito cedo na narração, o que mostra
quão avassaladora a personagem esculpida por Machado é. Seus olhos de ressaca
que afogaram Escobar e Bentinho são marca na história da Literatura e fazem
perfeita metáfora com seu ser: basta imergir-se naquele mar esverdeado por
muito tempo para esquecer de si até tornar-se inconsciente e nada mais ser.
Moderna para uma figura surgida em 1899, Machado personificou em Capitu valores
absurdos à época, tais como o adultério e a exploração da sensualidade
feminina”.
Mas Capitu não é a
única mulher marcante, entre as personagens do Bruxo do Cosme Velho, com sua
infinidade de “bruxarias”. Podemos citar, por exemplo, Fidélia e Carmo, de
“Memorial de Ayres”. Ou Flora, de “Esaú e Jacó”. Ou Virgília e Marcela, de
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Ou Guiomar, de “A mão e a luva”. Ou Lívia,
de “Ressurreição”. Ou, como acentua Miriam Fajardo, no blog “Tribo da Leitura”,
“a profusão das protagonistas de inúmeros contos — como ‘Missa do galo’,
‘Capítulo dos chapéus’, ‘Singular ocorrência’, ‘Uma senhora’, ‘Trina e uma’,
‘Primas de Sapucaia’, ‘Noite de almirante’, ‘A senhora do Galvão’, ‘Uns
braços’, ‘D. Paula’, Rita, em ‘A Cartomante’, que encenam vários tipos
femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum,
podendo mesmo ser classificados como Estudo sobre o feminino, ao demonstrarem a
sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética,
preconceito social, autoritarismo, amor, ciúme e adultério”.
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