Um drama recorrente
Pedro
J. Bondaczuk
O que escrever? Desde
que acordei, hoje, estou com essa pergunta piscando, como um daqueles anúncios
de neón das grandes cidades, diante dos olhos, atrapalhando minha concentração.
Não se trata, como algum leitor mais afoito pode concluir, de falta de assunto,
mas exatamente do contrário. Ou seja, há excesso de temas somado à carência de
tempo para desenvolver todos eles. É um drama recorrente, uma situação com que
já estou familiarizado, com a qual me confrontei inúmeras vezes, nos meus mais
de cinqüenta anos de redator. Ou de “escrevinhador”, como queiram.
Quem tem a obrigação de
produzir textos todos os dias, sem poder abrir mão dessa tarefa em nenhum
deles, até por razões contratuais ou por compromissos apenas apalavrados, mas
que são questões de honra, como é o meu caso, sabe como é isso. Quem lida com
palavras escritas não difere de ninguém. Não é infalível e nem invulnerável.
Não é nenhuma máquina. E mesmo que fosse, essas também, por melhor que seja sua
revisão, lá um belo dia apresentam mau funcionamento ou mesmo avarias mais
sérias.
Nem sempre o redator
está devidamente concentrado, ou, como se costuma dizer amiúde, “inspirado”
para escrever bem. Às vezes não dormiu direito (que não é o meu caso), ou, no
lado oposto, prolongou a noite mais do que deveria e os neurônios tardam a se
aquecer (embora sequer saiba se o aquecimento é o fator que determina seu bom
funcionamento). Só quem escreve rigorosamente todos os dias (e faço isso,
reitero, há já longuíssimos cinqüenta anos ou, dizendo de outra forma, há meio
século) é capaz de compreender essa angústia diante da telinha em branco (para
quem se vale do computador para redigir), ou de uma folha de papel em branco
(para quem se utiliza do método antigo de redação).
E por que optei hoje
por esse tema, ou seja, pela abordagem das minhas dificuldades, em determinados dias, para a definição de algum assunto a ser desenvolvido? Seria por
enrolação, apenas para preencher esse espaço? Embora seja o que parece,
juro-lhes, com a mão direita sobre a Bíblia, que não é. Ocorre que situações
como essa são bastante comuns na vida dos que lidam com textos – do jornalista
que tem que escrever matéria, ou artigo para a edição do dia; do advogado ao
fazer uma petição ou contestação; do juiz que tem que exarar sentença; do
redator publicitário encarregado de determinado anúncio urgente, com o cliente
na sala ao lado esperando a conclusão e, claro, do escritor – e todos
sentem-se, dada a obrigatoriedade, pressionados, aflitos, malucos.
Vai me enganar,
caríssimo leitor que, simultaneamente, tem na literatura (ou no jornalismo,
advocacia, publicidade etc.) sua fonte de renda, seu ganha pão, que nunca se
sentiu dessa maneira? Caso não tenha se sentido, parabéns, meu amigo! Você é um
gênio! Escrever por escrever nem é o problema. Para redigir qualquer bobagem,
sem pé e nem cabeça, despida de conteúdo ou sentido, qualquer redator
experiente redige sem vacilar, mesmo que esteja chapado, bêbado como um gambá.
O que dificulta as
coisas, notadamente para o jornalista e o escritor, é a expectativa alheia. O
leitor, implacável juiz, sempre espera de nós textos geniais, sem erros e nem
contradições e nada menos do que isso. Se o que escrevermos não tiver essa
característica, mesmo que por apenas uma única e reles vez, corremos o risco de
perdê-lo. Cairemos, irremediavelmente, no seu conceito. E redator sem leitor
sequer tem razão de existir. Ou não é assim?
Por isso, ajo com
extrema cautela antes de fazer juízo sobre determinado redator, jornalista ou
escritor. Não me limito a ler um único dos seus textos, artigos ou livros. E
mesmo depois de haver lido vários deles, caso conclua que, digamos, não é do
ramo, guardo minhas observações negativas só para mim. Penso nos sonhos e
ilusões que esse indivíduo nutre e me recuso ser a pessoa que os destrua.
Alguém, certamente, o fará e com requintes de crueldade.
Adoto o credo exposto
por Machado de Assis em uma crônica que consta de seu livro “Cartas fluminenses”, em que revela: “Não privo com as musas, mas gosto delas. Leio por
instruir-me; às vezes, por consolar-me. Creio nos livros e adoro-os”. Mas o
“Bruxo do Cosme Velho”, pelo menos na função de jornalista, teve essa mesma
insegurança, essa chatíssima incerteza que, de vez em quando, se apossa dos que
têm a obrigação de produzir, todos os dias, sem exceção, algum texto e que,
ainda por cima, o leitor impiedoso exige que seja “sempre” genial.
No seu caso, Machado de
Assis reclamou da obsessão da sua “clientela” por novidades – e aí é que reside
o “x” da questão, pois estas não faltam, pelo contrário, abundam, brotam a todo
o momento em excesso e o drama é o de escolher qual delas abordar – nesta
deliciosa comparação:
“Bem se podia comparar
o público áquela serpente – deus dos antigos mexicanos – que, depois de devorar
um alentado mamífero, prostra-se até que a ação digestiva lhe tenha esvaziado o
estômago; então, o flagelo das matas corre em busca de novo repasto, emborca
novo animal pela garganta abaixo e cai em nova e profunda modorra de digestão.
Esquisita que pareça a comparação, o público é assim. Precisa de uma novidade e
de uma grande novidade; quando lhe aparece alguma, digere-a com placidez e
calma, até que desfeita ela, outra lhe fica ao alcance e lhe satisfaz a
necessidade imperiosa”.
Bem, já pode ser
apagado o neón piscando e piscando sem parar a incômoda pergunta que me
apoquenta desde que acordei: o que escrever? Na impossibilidade de decidir,
deixei as coisas fluírem naturalmente. Ao comentar minha dificuldade de hoje,
quase sem perceber, trouxe-lhes, afinal, um tema insólito para refletir. É
“genial”, como de mim muitos esperam? Como posso saber se não estou na cabeça
do implacável e supercrítico leitor?!! Mas, convenhamos, trouxe “novidade” para
a voraz serpente devorar e, em seguida, lentamente digerir... Ou não?
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