Titânica luta contra a
fragilidade
Pedro
J. Bondaczuk
Os últimos anos de vida
de Salvador Dali foram complicados, doridos, penosos, sofridos, notadamente
depois que seus problemas de saúde impossibilitaram-no de exercer sua arte. Foi
uma titânica luta contra a própria fragilidade física, psicológica e afetiva.
Sua derrocada agravou-se, e muito, com a morte da esposa, sua muito amada Gala,
ocorrida na madrugada de 10 de junho de 1982, na localidade de Port Lligat. O
casal não tinha filhos. Subitamente, o artista, que parecia tão auto-suficiente
e a salvo de tristezas e abalos, começou a definhar afetiva, psíquica e em
conseqüência, fisicamente e a se decompor em vida. Foram sete anos de agonia
até que seu coração não suportou mais e, finalmente parou.
Comove-me esse período
na vida de Salvador Dali. Minha admiração por ele e, até, minha genuína afeição
(posto que à distância) cresceram, exponencialmente, diante, sobretudo, das
provas de amor pela companheira de sua vida que deu após perdê-la. Acho irônico
o fato de somente valorizarmos devidamente quem amamos quando a perdemos ou
estamos em vias de perder. Fidelidade é uma das virtudes que mais prezo. E não
importa fiel a o quê as pessoas sejam: a um amor, a uma causa, a uma idéia a
alguma arte etc. etc. etc.
Sobre o fato de não
haver gerado filhos, Dali apontou um motivo que, na época, me pareceu até
antipático, mas que se coadunava com seu jeito fanfarrão, pelo menos em
público, de então. É certo que deu essa declaração quando Gala ainda estava
viva e cheia de saúde e disposição. Depois da morte da amada, nunca mais tocou
no assunto. Sua justificativa foi a seguinte: “Nunca pensei em ter filhos. As
pessoas importantes nunca têm filhos ilustres”. Será que ele pensava,
realmente, isso, ou foi mais uma das tantas declarações feitas com o desejo
deliberado e único de chocar as pessoas? Como saber?
Os problemas de saúde
de Salvador Dali começaram, a rigor, dois anos antes da morte de Gala. Em 1980,
ele cismou de se automedicar de uma dispepsia que o incomodava com frequência.
Deveria ter procurado um médico, claro, mas não procurou. Em vez disso, tomou,
por sua conta e risco, um coquetel de medicamentos, não receitado por ninguém,
achando que, se não lhe fizesse bem, mal também não faria. Enganou-se. E o
engano foi trágico. Sofreu uma brutal intoxicação medicamentosa que, se não o
levou para o túmulo, por envenenamento, danificou severamente seu sistema
nervoso. A partir de então, perdeu a capacidade artística, notadamente a de
pintar.
Mas foi a morte de Gala
que, se não determinou, pelo menos agravou bastante sua ruína física. Ficou
profundamente deprimido e desorientado com a perda, isolando-se dos amigos, da
mídia, de tudo. Notava-se que Dali havia perdido a vontade de viver. Deixou de
se alimentar e foi necessário que o alimentassem à força, mediante uma sonda
nosogástrica, para que não viesse a morrer de inanição. Para complicar ainda
mais as coisas, não tardou que se manifestasse o Mal de Parkinson, que lhe
provocou terríveis tremores, principalmente no lado direito do corpo.
Com o objetivo de ficar
“mais próximo” das lembranças da amada (como se isso fosse preciso!), Dali
mudou-se de Figueres, sua cidade natal, para o castelo que havia comprado para
Gala, em Pubol. E foi ali que ocorreu, em 30 de agosto de 1984, um incêndio,
cujas causas, até hoje, intrigam os especialistas e que, na época, a polícia
não pôde determinar como aconteceu e nem se foi acidental ou proposital. Para
muitos, o pintor, profundamente deprimido, tentou se matar, pondo fogo no
quarto. Outros tantos, porém, atribuíram o fato a uma suposta tentativa de
homicídio de determinado empregado, que teria sido maltratado por Dali. Apesar
da suspeita, nada ficou provado a esse propósito e a polícia arquivou o caso. O
mais provável é que o incêndio tenha sido causado por negligência, ou do
próprio artista, ou de algum dos empregados do castelo.
Dali foi salvo das
chamas, mas por muito pouco não perdeu a vida. Ficou bastante ferido, com
graves queimaduras pelo corpo. Teve que ser internado em um hospital de
Barcelona, onde permaneceu por 47 dias. Ao receber alta, foi levado, por um
grupo de amigos, patronos e artistas que o admiravam e o tinham como mestre, de
volta para Figueres, sendo instalado em um anexo do museu conhecido como a
Torre Galatéia, em homenagem à sua querida Gala.
De 1984 até a sua
morte, em janeiro de 1989, Dali raramente saiu de casa. Havia perdido o encanto
pela vida e se tornou arredio a tudo e a todos. Guardas particulares,
especialmente contratados, foram encarregados de manter ao largo a maioria dos
visitantes que queriam conhecer de perto o gênio surrealista catalão. Ele
passou a ser atendido por um grupo de enfermeiros, que se revezavam em
plantões, além de um camareiro que o servia há já quarenta anos, de um
fisioterapeuta e de uma secretária.
Embora tivesse parado
de pintar desde que sofreu a intoxicação medicamentosa que comprometeu seu
sistema nervoso, Salvador Dali ainda desenhou uma nova fachada para a Torre
Galatéia, criando uma “extravaganza” (o que no seu caso era até redundância),
tipicamente daliniana, com centenas de réplicas em gesso de cones de pão com
três ângulos, que pontilham as paredes externas, e, no teto, à guisa de
cobertura, elaborou um grupo de ovos plásticos, de quase quatro metros de
altura. Foi uma das últimas excentricidades de um artista caracterizado por criar,
enquanto a saúde lhe permitiu, o insólito e o surreal.
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