As cidades dos poetas
Pedro
J. Bondaczuk
O saudoso escritor
gaúcho, Moacyr Scliar, no prefácio do livro “Mário Quintana, Vida e Obra”, de
Nelson Fachinelli, afirma que os poetas “habitam” quatro cidades diferentes, de
acordo com sua personalidade que, ao fim e ao cabo, influencia tanto na
temática que abordam quanto no estilo com que compõem: a das Ilusões, a dos
Herméticos, a da Dura Verdade e a do Sonho. Achei pitoresca e oportuna essa
classificação. Claro que se trata de metáfora o que, aliás, combina a caráter
com poesia.
A cidade das Ilusões
seria a dos que se alienam, dos que se recusam a encarar a realidade, elucubram
um mundo ideal e que acham que todos os que os lêem querem compartilhar,
também, desse exercício de fuga do real. Muitos querem, de fato, mas não todos.
Com isso, limitam o universo de seus leitores. Não me oponho à exploração de
temas do tipo que esses poetas exploram, desde que não o façam com
exclusividade. Ou seja, desde que façam, amiúde, incursões pela realidade, sem
perder a ternura e a beleza.
Da segunda cidade, a
dos Herméticos, o próprio nome já indica a característica. É a dos que criam
verdadeiras fórmulas matemáticas ou engendram linguagem própria, cifrada,
incompreensível a não iniciados, que impingem aos leitores como poesia. Não me
oponho radicalmente a essas experiências desde que seu produto final, o poema,
tenha um mínimo de lógica e de coerência e, pelo menos, sugira alguma coisa, na
impossibilidade de explicitá-la. Esse hermetismo também é uma forma de
alienação. Aliás, pior do que a dos habitantes da cidade das Ilusões. E eles
têm leitores? Certamente que sim. Não faltam basbaques no mundo ávidos por
ostentar a erudição que não têm.
A propósito da cidade
dos Herméticos, Scliar observou: “Lá os edifícios não têm portas e nem janelas,
mas sim entradas secretas, por onde só penetram os iniciados. As pessoas usam
máscaras e só falam em código”. Ao criticar essa forma de fazer poesia, faço,
também, uma autocrítica: Eu já “residi” por algum tempo nessa cidade, posto que
temporariamente. Notava, sobretudo, que meus poemas eram interpretados pelos
que supostamente os entendiam (e que não compreendiam coisíssima nenhuma) de
forma completamente oposta ao que eu pretendia que fossem. Uma lástima! Melhor
é ser simples e claro. E sempre!
A terceira cidade dos
poetas é a da Dura Verdade. Nela ninguém sorri. Em vez de falar, seus moradores
vociferam. Imprecações e palavrões compõem seus cartazes e anúncios. Ali,
conforme Scliar observou, “as pessoas andam magras, vestidas de trapos e trocam
palavras amargas entre si”. Também já estive nessa cidade. Não suportei, porém,
o humor e o ânimo que pairavam no ar. Seus moradores só falam de morte, de
fracassos (notadamente os amorosos), de doenças, violências, injustiças e
cadáveres. Conheço inúmeros poetas assim. Leio-os, mas somente por dever de
ofício. São o meu oposto. Enquanto eles estão em perpétuo estado de
beligerância com a vida, eu estou de bem com ela e cada vez mais apaixonado.
Finalmente, a quarta
cidade é a dos Sonhos. Sobre ela, Mário Quintana, um dos seus principais e mais
talentosos arquitetos, observou, com proficiência: “Ela existe dentro de outra
e nela o tempo é um novelo inextrincavelmente emaranhado pelos gatos”. Esta é a
na qual fixei residência, quer como poeta, quer como leitor. Ela às vezes é
confundida com a cidade das Ilusões, mas tem personalidade própria. Basta
atentar para seus contornos, sua paisagem, seus edifícios e para as pessoas que
a habitam. Há ilusões, é verdade, em uma ou outra esquina, mas escassas e a título,
apenas, de decoração.
É muito diferente da
cidade dos Herméticos e não há como confundi-las. Não tem morcegos que apreciam
a escuridão como na urbe dos obscuros. Estes têm que habitar ali mesmo, na
escuridão, porquanto um reles lusco-fusco lhes cegaria, ou obscureceria a visão
e os faria sentirem-se mal. Há pessoas que adoram não entender das coisas. O
que fazer?
A cidade dos Sonhos não
tem nada a ver com a da Dura Realidade, embora cada pedra que forma os
alicerces de seus edifícios e que pavimenta suas ruas e calçadas seja talhada
da pedreira da Verdade. Sonhar não significa mentir, enganar, alienar.
Representa concentrar forças para a conquista de determinados objetivos, mesmo
que remotos e aparentemente inalcançáveis. Não se trata de alienação, mas de
enxergar a realidade sob prisma positivo.
A cidade dos Sonhos é
uma das três que Mário Quintana teve. As outras duas foram sua Alegrete natal e
Porto Alegre, que elegeu como “pátria” de mútua e consensual adoção, de onde
nunca se afastou e da qual foi alçado à condição de cidadão emérito, justo
título que lhe foi conferido na década de 70. Bem que o poeta mereceu, e muito
mais. Afinal, soube cantar, como poucos, suas belezas e virtudes, sem esconder
seus problemas.
Notem que as duas
cidades, a em que Quintana nasceu e a em que viveu a maior parte de sua vida e
onde morreu, trazem, nos próprios nomes, sugestões de felicidade, de risos,
satisfações e alegria: Alegrete e Porto Alegre. E isso combinou a caráter com
seu bom-humor e modo de ser.
No que se refere a
sentimentos, pode-se dizer que Quintana foi uma espécie de “bígamo”: esteve
casado, indissoluvelmente, com duas cidades. Uma roceira, com jeitão camponês,
retribuiu com orgulho esse amor sempre que pôde. Tanto que na sua praça central
foi erguido um monumento ao poeta, seu mais ilustre cidadão. Sua afeição por
Alegrete, portanto, foi até um tanto “edipiana”. Ela foi, simultaneamente, mãe
e cônjuge.
Quando na década de 60
a municipalidade dessa cidadezinha do interior gaúcho decidiu prestar-lhe essa
homenagem, Quintana escreveu, humorado, ao idealizador desse reconhecimento,
Hélio Ricciardi: “Um engano em bronze é um engano eterno”. Mas nunca uma cidade
agiu com maior acerto do que Alegrete, em relação ao seu ilustre filho.
A outra amada de
Quintana é mais sofisticada. Tem o porte e o aspecto das grandes damas da
sociedade, embora sem esconder um encanto meio que provinciano, que nunca
perdeu, a despeito de ter se desenvolvido tanto, o que, em vez de depreciá-la,
torna-a mais fascinante aos olhos dos que a conhecem. Foi sobre esse amor da
idade madura que o poeta escreveu:
“Ó
céus de Porto Alegre, como farei
para
levar-vos para o céu?”
é
que,
longe
de ti, de tuas mãos milagrosas,
de
onde meus versos voavam – pássaros de luz
a
que deste vida com o teu calor...
é
que longe de ti eu me sinto perdido
-
sabes?
-
desertamente perdido de mim!”
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