Divagações
sobre a memória
Pedro J. Bondaczuk
A memória é um dos temas
recorrentes que não me canso de abordar. Tem relação direta com o tempo, minha
obsessão literária, mais especificamente com o passado, e somente com ele. Por
que? Porque o presente é tão rápido, rapidíssimo (mais veloz até do que a luz),
que, na prática, não passa de abstração. Mal soletro a primeira sílaba da
palavra que o nomeia e... ele já passou. O futuro, por sua vez, é tão abstrato
quanto. Pode acontecer ou não. E, em um piscar de olhos, imediatamente se torna
passado, praticamente sem tempo de ser presente. Por isso, ninguém se “lembra”
do que ainda não aconteceu. É uma impossibilidade física, biológica e,
sobretudo, lógica. E o que está
acontecendo, no instante em que lembramos, já é passado. Lembramo-nos, pois,
somente do que passou, não importa se há mera fração de segundo ou se há um
século, caso consigamos emplacar idade centenária.
A memória é nosso real
patrimônio, a única coisa que nos resta até nosso derradeiro sopro de vida.
Isso quando resta. Antes que alguém mencione, nem sempre, ou nem todos logram
conservá-la por toda a existência. Há doenças que a suprimem por completo. Às
vezes, essa amnésia é apenas parcial, mas igualmente indesejável. Outras
tantas, as lembranças, embora não desapareçam por completo, misturam-se a
fantasias, sem que se consiga distinguir o que aconteceu do que “achamos” que ocorreu. Refiro-me,
pois, a condições normais. E nestas, a memória é a única coisa que de fato nos
pertence, que é exclusivamente nossa e que permanece assim até nosso derradeiro
sopro de vida. Tudo o mais se perde, se
esfacela, murcha, fenece e desaparece.
Generosa, a memória tem uma
característica peculiar: é seletiva (já escrevi a esse propósito, mas nunca é
demais reiterar). Apaga (ou atenua) as lembranças dos momentos ruins pelos
quais passamos, de perdas, aflições e grandes sofrimentos. Em contrapartida,
perpetua episódios felizes, aos quais, além disso, dá toque todo especial, fazendo com que as
alegrias, sucessos e episódios de felicidade nos pareçam maiores e melhores do
que de fato foram. Por isso, a memória constitui-se no cerne da nossa
personalidade. E é utilíssima em todas as profissões, notadamente, na nossa, de
escritores. Quanto mais informações (e, sobretudo, precisas) retivermos, menos
tempo perderemos em pesquisas quando da redação de nossos textos.
Se tivermos, por exemplo, na
ponta da língua, as regras gramaticais, facilitaremos a tarefa de revisão,
embora não possamos eliminá-la, por outras razões que não vêm ao caso
mencionar. Gosto de tratar do assunto em seus vários aspectos e me proponho a
tratá-lo mais vezes neste espaço diário de reflexão, embora o assunto divida
opiniões de leitores. Alguns cobram-me, por e-mail, que o aborde mais amiúde e
nos aspectos não somente filosóficos, ou literários, mas também práticos.
Outros, porém, reclamam quando trato do tema, sob o pretexto de eu estar sendo
repetitivo. Há pessoas que reclamam de tudo. Faz parte da sua personalidade.
Confundem o saudável exercício da opinião com ranhetice e mau humor.
Ainda quando se manifestam de
maneira cortês, civilizada e, principalmente, educada, são chatos, mas
toleráveis. Mas há os megalomaníacos, que se julgam oniscientes e que, para os
tornar ainda mais chatos, são mal educados. Esses desmancham-se em palavrões e
ofensas, rigorosamente gratuitos e que, em vez de destacá-los favoravelmente,
os diminuem aos olhos de qualquer um. Ademais, os que reclamam que sou
repetitivo ao escrever sobre a memória são ou distraídos, ou desmemoriados,
quando não as duas coisas simultaneamente. Não percebem que o tema, embora seja
o mesmo, é abordado por ângulos diferentes. Enfim...
Mas, voltando a falar de memória,
devemos cultivá-la com carinho, constância e muito cuidado, pois será ela que
irá nos encantar e consolar em nossos derradeiros dias. Jorge Luís Borges
(sempre ele!) constata, num de seus livros: “Somos nossa memória. Somos esse
quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos partidos”. E,
acaso, não somos?!
Guilherme de Almeida tem um poema
extraordinário, que ilustra nossa dificuldade de resgatar o passado com
relativa precisão. Diga-se de passagem, que essa não é tarefa fácil. Aliás,
muito pelo contrário. Raros o conseguem e, mesmo assim, a tal da precisão é
contestável. O referido poema intitula-se "Tempo" e diz:
"Às vezes parece que faz um
século.
às vezes parece que faz um
minuto.
Eu devo andar tão perdido no
tempo,
tão perdido dos outros,
tão perdido de mim mesmo,
que meu rosto no espelho olhou-se
esta manhã,
e em vez de perguntar:`Onde é que
você está?'
resolveu perguntar:`Quando é que
você está?".
Se de um dia para outro, nossa
memória faz tamanha confusão de dados, o que dizer de um mês para outro, de um
ano para outro, de uma década para outra, de uma vida para outra?
Voltarei, oportunamente, ao
assunto, até para atender a solicitação dos leitores que querem saber um pouco
mais do que sei e do que penso a respeito. Mas apelo aos desmemoriados para que
façam uma forcinha e tentem memorizar o teor desta reflexão de hoje, para não
me acusarem, sem fundamento, que estou repetindo o assunto, como um eco que
repercute em determinados lugares por um bom tempo, após se haver emitido
alguma palavra.
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