Friday, April 05, 2013


Dedo na ferida

Pedro J. Bondaczuk

Carlos Drummond de Andrade foi, certamente, um dos poetas que mais trataram das injustiças e contradições políticas, sociais e econômicas do seu tempo – o século XX – e não somente no Brasil, mas em todo o mundo. Não fica nada a dever – a não ser no talento para a escolha de palavras adequadas, precisas, como que medidas a régua e compasso – para escancarar a realidade, com mais constância e vigor, até, do que jornalistas, sociólogos, antropólogos e vai por aí afora.

Drummond sequer se deu o trabalho de camuflar, em complicadas metáforas, seu protesto, sua perplexidade, suas denúncias, seu libelo acusatório a esse processo absurdo, que vem de longínquo passado, de exploração do homem pelo homem. Põe, direto, o dedo na ferida. Compõe imagens de uma simplicidade franciscana, inteligíveis a qualquer pessoa, mesmo às mais simples ou às mais alienadas que não enxergam, ou não querem enxergar (o pior cego é o que, embora podendo, se recusa a ver), a realidade do mundo que as circundam. Também nesse aspecto sai à frente de outros poetas que, provavelmente por medo, dissimulam seus protestos, recorrendo a metáforas, não raro “criptográficas”.

Essa clareza e objetividade fizeram de Drummond um dos mais exímios comunicadores do seu tempo. Há artistas (e jornalistas) que no afã de exibirem erudição (quando a têm), que inventam uma “linguagem” nova, que pode ser tudo, menos português. Mais parecem códigos de agências de espionagem do que nossa expressiva língua portuguesa, “última flor do Lácio, inculta e bela”. O que escrevem é entendido apenas por eles mesmos e talvez por meia dúzia de “iniciados”. Por isso, suas denúncias e protestos não causam o menor efeito, não conscientizam ninguém, pois ninguém entende o que escrevem. O curioso é que há basbaques, que para não passarem por ignorantes (que na verdade são), afirmam, com arrogância, que entendem tudo desses textos cifrados e obscuros, peças modelares de anticomunicação, quando, de fato, não entendem patavina.

Com Drummond, isso não acontece. Ninguém, por exemplo, descreve com maior clareza e contundência a prepotência de determinadas autoridades, que nós conhecemos muito bem, disfarçada sob um manto (esgarçado) de legalidade, do que, por exemplo, este poema, intitulado “Intimação”:

“Abre em nome da lei.
Em nome de que lei?
Acaso lei sem nome?
Em nome de que nome
cujo agora me some
se em sonho o soletrei?
Abre em nome do rei.
Em nome de que rei
é a porta arrombada
para entrar o aguazil
que na destra um papel
sinistramente branco
traz, e no ombro o fuzil?

Abre em nome de til.
Abre em nome de abrir,
Em nome de poderes
cujo vago pseudônimo
não é de conferir:
cifra oblíqua na bula
ou dobra na cogula
de inconsistente frei.

Abre em nome da lei.
Abre sem nome e lei.
Abre mesmo sem rei.
Abre, sozinho ou grei.
Não abras; à força
de intimar-te, repara:
eu já te desventrei”.

Esse poema agudíssimo e contundente contra as arbitrariedades a que estamos sujeitos, em nome da lei, ou de que somos vítimas, não é exceção na obra de Drummond. Pode-se dizer, até, que é quase regra. O poeta retrata, nua e cruamente, essa época dura, de injustiças, angústias, desencanto e de toda a sorte de opressão em versos ainda mais claros e diretos. Refiro-me a este poema “Nosso tempo”, do qual transcrevo apenas alguns trechos, dada sua extensão:
  
“Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se
na pedra. (...)

(...) É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mais ainda, é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa;
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito,
do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água,
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
Papéis?
Crimes?
Moedas?
Ó conta, velha preta, ó jornalista, ó poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos,
abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos
arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai,
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão,
da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai;
tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram. (...)

(...) É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
c com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas,
promete ajudar
a destrui-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme”.

Existe libelo mais agudo, mais direto, mais nu e cru contra uma ditadura (não importa qual) do que este? Há páginas mais plenas de realismo sobre o cinismo, a prepotência e a opressão,  por parte dos detentores do poder, do que estes versos apaixonados e candentes? Se houver, desconheço. Que jornalista, que ensaísta político, que sociólogo ou que panfletário inflamado escreveu palavras mais contundentes, diretas e duras? No entanto... foram escritas por um poeta, escritor genericamente estereotipado como alienado em muitos círculos de pseudo-intelectuais, que não conseguem enxergar a realidade sequer nas linhas, quanto mais nas entrelinhas de um texto.

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