Dedo na ferida
Pedro
J. Bondaczuk
Carlos Drummond de
Andrade foi, certamente, um dos poetas que mais trataram das injustiças e
contradições políticas, sociais e econômicas do seu tempo – o século XX – e não
somente no Brasil, mas em todo o mundo. Não fica nada a dever – a não ser no
talento para a escolha de palavras adequadas, precisas, como que medidas a
régua e compasso – para escancarar a realidade, com mais constância e vigor,
até, do que jornalistas, sociólogos, antropólogos e vai por aí afora.
Drummond sequer se deu
o trabalho de camuflar, em complicadas metáforas, seu protesto, sua
perplexidade, suas denúncias, seu libelo acusatório a esse processo absurdo,
que vem de longínquo passado, de exploração do homem pelo homem. Põe, direto, o
dedo na ferida. Compõe imagens de uma simplicidade franciscana, inteligíveis a
qualquer pessoa, mesmo às mais simples ou às mais alienadas que não enxergam,
ou não querem enxergar (o pior cego é o que, embora podendo, se recusa a ver),
a realidade do mundo que as circundam. Também nesse aspecto sai à frente de
outros poetas que, provavelmente por medo, dissimulam seus protestos,
recorrendo a metáforas, não raro “criptográficas”.
Essa clareza e
objetividade fizeram de Drummond um dos mais exímios comunicadores do seu tempo.
Há artistas (e jornalistas) que no afã de exibirem erudição (quando a têm), que
inventam uma “linguagem” nova, que pode ser tudo, menos português. Mais parecem
códigos de agências de espionagem do que nossa expressiva língua portuguesa,
“última flor do Lácio, inculta e bela”. O que escrevem é entendido apenas por
eles mesmos e talvez por meia dúzia de “iniciados”. Por isso, suas denúncias e
protestos não causam o menor efeito, não conscientizam ninguém, pois ninguém
entende o que escrevem. O curioso é que há basbaques, que para não passarem por
ignorantes (que na verdade são), afirmam, com arrogância, que entendem tudo
desses textos cifrados e obscuros, peças modelares de anticomunicação, quando,
de fato, não entendem patavina.
Com Drummond, isso não
acontece. Ninguém, por exemplo, descreve com maior clareza e contundência a
prepotência de determinadas autoridades, que nós conhecemos muito bem,
disfarçada sob um manto (esgarçado) de legalidade, do que, por exemplo, este
poema, intitulado “Intimação”:
“Abre
em nome da lei.
Em
nome de que lei?
Acaso
lei sem nome?
Em
nome de que nome
cujo
agora me some
se
em sonho o soletrei?
Abre
em nome do rei.
Em
nome de que rei
é
a porta arrombada
para
entrar o aguazil
que
na destra um papel
sinistramente
branco
traz,
e no ombro o fuzil?
Abre
em nome de til.
Abre
em nome de abrir,
Em
nome de poderes
cujo
vago pseudônimo
não
é de conferir:
cifra
oblíqua na bula
ou
dobra na cogula
de
inconsistente frei.
Abre
em nome da lei.
Abre
sem nome e lei.
Abre
mesmo sem rei.
Abre,
sozinho ou grei.
Não
abras; à força
de
intimar-te, repara:
eu
já te desventrei”.
Esse poema agudíssimo e
contundente contra as arbitrariedades a que estamos sujeitos, em nome da lei,
ou de que somos vítimas, não é exceção na obra de Drummond. Pode-se dizer, até,
que é quase regra. O poeta retrata, nua e cruamente, essa época dura, de
injustiças, angústias, desencanto e de toda a sorte de opressão em versos ainda
mais claros e diretos. Refiro-me a este poema “Nosso tempo”, do qual transcrevo
apenas alguns trechos, dada sua extensão:
“Este
é tempo de partido,
tempo
de homens partidos.
Em
vão percorremos volumes,
viajamos
e nos colorimos.
A
hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os
homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As
leis não bastam. Os lírios não nascem
da
lei. Meu nome é tumulto e escreve-se
na
pedra. (...)
(...)
É tempo de muletas.
Tempo
de mortos faladores
e
velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mais
ainda, é tempo de viver e contar.
Certas
histórias não se perderam.
Conheço
bem esta casa;
pela
direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a
sala grande conduz a quartos terríveis,
como
o do enterro que não foi feito,
do
corpo esquecido na mesa,
conduz
à copa de frutas ácidas,
ao
claro jardim central, à água,
que
goteja e segreda
o
incesto, a bênção, a partida,
conduz
às celas fechadas, que contêm:
Papéis?
Crimes?
Moedas?
Ó
conta, velha preta, ó jornalista, ó poeta, pequeno historiador urbano,
ó
surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos,
abre-te
e conta,
moça
presa na memória, velho aleijado, baratas dos
arquivos,
portas rangentes, solidão e asco,
pessoas
e coisas enigmáticas, contai,
capa
de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos
selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos
na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão,
da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai;
tudo
tão difícil depois que vos calastes...
E
muitos de vós nunca se abriram. (...)
(...)
É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio,
palavra
indireta, aviso
na
esquina. Tempo de cinco sentidos
num
só. O espião janta conosco.
É
tempo de cortinas pardas,
de
céu neutro, política
na
maçã, no santo, no gozo,
amor
e desamor, cólera
branda,
gim com tônica,
olhos
pintados,
dentes
de vidro,
grotesca
língua torcida.
A
isso chamamos: balanço.
No
beco apenas um muro,
sobre
ele a polícia.
No
céu da propaganda
aves
anunciam
a
glória.
No
quarto,
irrisão
e três colarinhos sujos.
O
poeta
declina
de toda responsabilidade
na
marcha do mundo capitalista
c
com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas,
promete
ajudar
a
destrui-lo
como
uma pedreira, uma floresta,
um
verme”.
Existe libelo mais
agudo, mais direto, mais nu e cru contra uma ditadura (não importa qual) do que
este? Há páginas mais plenas de realismo sobre o cinismo, a prepotência e a
opressão, por parte dos detentores do
poder, do que estes versos apaixonados e candentes? Se houver, desconheço. Que
jornalista, que ensaísta político, que sociólogo ou que panfletário inflamado
escreveu palavras mais contundentes, diretas e duras? No entanto... foram
escritas por um poeta, escritor genericamente estereotipado como alienado em
muitos círculos de pseudo-intelectuais, que não conseguem enxergar a realidade
sequer nas linhas, quanto mais nas entrelinhas de um texto.
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