Thursday, April 04, 2013


Só a palavra como arma

Pedro J. Bondaczuk

A temática política, na vasta e consistente obra poética de Carlos Drummond de Andrade, é raramente citada pelos críticos e historiadores de arte, talvez por distração ou sabe-se lá o motivo. Mas são inúmeros os poemas em que ele fala de tiranos e tiranias, assumindo posição clara e corajosa face ditaduras e ditadores. Quando da instalação do Estado Novo, em 1937, no auge do regime getulista, por exemplo, o poeta de Itabira escreveu estes versos, nos quais manifesta, sobretudo, um sentimento de impotência para combater o cinismo, o oportunismo, a hipocrisia e o arbítrio dos detentores do poder de então com simples palavras. Era, convenhamos, luta desigual. Nós, escritores, que temos nelas nossa matéria-prima, sabemos como elas são caprichosas, complicadas e até temperamentais. Lidar com palavras, e com competência, não é para qualquer um.

Drummond escreveu a esse respeito, na oportunidade, em “O lutador”. Não se trata, propriamente, de poema político. Mostra, todavia, a impotência de quem tem somente este recurso para lutar. Por uma série de motivos, considero esses versos dos mais reveladores e verdadeiros da literatura não somente brasileira, mas mundial. Sei o que é lutar diariamente com essas “amadas” esquivas e não raro infiéis que, quando menos espero, me deixam na mão. Leiam o poema abaixo e digam se não estou certo:

“Lutar com palavras
é a luta mais vã
entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas são fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
o poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.

Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue...
Entretanto luto.

Palavra, palavra,
(digo exasperado)
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido o inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
outra sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai
é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca
tudo se evapora.

O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono”.

A despeito dessa confissão a respeito da palavra e do empenho para encontrar as mais adequadas para cada situação, Drummond jamais se calou diante da prepotência. Nem quando intelectuais de várias áreas, como Graciliano Ramos, por exemplo, eram encerrados em lôbregos calabouços medievais apenas em decorrência das idéias que defendiam, nos tristes tempos dos DIPs, dos DOPS e de tantos outros órgãos repressores, de siglas sinistras como estas, cuja função específica era torturar pessoas que, aliás, pagavam os salários dos torturadores, cuja função era preservar um regime e uma ideologia contrários aos interesses nacionais.

O livro “A rosa do povo”, de Drummond, traz poemas antológicos a esse respeito, jamais vistos em outros poetas, mesmo os que firmaram reputação de contestadores. E o poeta de Itabira sequer tinha essa fama. Sinta, por exemplo, caro leitor, toda a angústia expressa no poema “O medo”:

“Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas:
carteiro, ditador, soldado
nosso destino incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios,
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor falhou, chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti
meu companheiro moreno.
De nós, de vós e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa,
se parte, se transe, e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema, outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-se.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus, vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo.

Eles povoam a cidade, o mundo,
depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo”.

Duras palavras! Radiografia explícita de um tempo, de um povo, de uma geração às voltas com tiranos e tiranias, com doentes e doenças e, sobrevoando tudo isso, como urubus à cata de carniça, com a prepotência dos que se valiam da força bruta semeando medos por onde passavam.

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