Só a palavra como arma
Pedro
J. Bondaczuk
A temática política, na
vasta e consistente obra poética de Carlos Drummond de Andrade, é raramente
citada pelos críticos e historiadores de arte, talvez por distração ou sabe-se
lá o motivo. Mas são inúmeros os poemas em que ele fala de tiranos e tiranias,
assumindo posição clara e corajosa face ditaduras e ditadores. Quando da
instalação do Estado Novo, em 1937, no auge do regime getulista, por exemplo, o
poeta de Itabira escreveu estes versos, nos quais manifesta, sobretudo, um
sentimento de impotência para combater o cinismo, o oportunismo, a hipocrisia e
o arbítrio dos detentores do poder de então com simples palavras. Era,
convenhamos, luta desigual. Nós, escritores, que temos nelas nossa
matéria-prima, sabemos como elas são caprichosas, complicadas e até
temperamentais. Lidar com palavras, e com competência, não é para qualquer um.
Drummond escreveu a
esse respeito, na oportunidade, em “O lutador”. Não se trata, propriamente, de
poema político. Mostra, todavia, a impotência de quem tem somente este recurso
para lutar. Por uma série de motivos, considero esses versos dos mais
reveladores e verdadeiros da literatura não somente brasileira, mas mundial.
Sei o que é lutar diariamente com essas “amadas” esquivas e não raro infiéis
que, quando menos espero, me deixam na mão. Leiam o poema abaixo e digam se não
estou certo:
“Lutar
com palavras
é
a luta mais vã
entanto
lutamos
mal
rompe a manhã.
São
muitas, eu pouco.
Algumas
são fortes
como
o javali.
Não
me julgo louco.
Se
o fosse, teria
o
poder de encantá-las.
Mas
lúcido e frio
apareço
e tento
apanhar
algumas
para
meu sustento
num
dia de vida.
Deixam-se
enlaçar,
tontas
à carícia
e
súbito fogem
e
não há ameaça
e
nem há sevícia
que
as traga de novo
ao
centro da praça.
Insisto,
solerte.
Busco
persuadi-las.
Ser-lhes-ei
escravo
de
rara humildade.
Guardarei
sigilo
de
nosso comércio.
Na
voz, nenhum travo
de
zanga ou desgosto.
Sem
me ouvir deslizam
perpassam
levíssimas
e
viram-me o rosto.
Lutar
com palavras
parece
sem fruto.
Não
têm carne e sangue...
Entretanto
luto.
Palavra,
palavra,
(digo
exasperado)
se
me desafias,
aceito
o combate.
Quisera
possuir-te
neste
descampado
sem
roteiro de unha
ou
marca de dente
nessa
pele clara.
Preferes
o amor
de
uma posse impura
e
que venha o gozo
da
maior tortura.
Luto
corpo a corpo,
luto
todo o tempo,
sem
maior proveito
que
o da caça ao vento.
Não
encontro vestes,
não
seguro formas,
é
fluido o inimigo
que
me dobra os músculos
e
ri-se das normas
da
boa peleja.
Iludo-me
às vezes,
pressinto
que a entrega
se
consumará.
Já
vejo palavras
em
coro submisso,
esta
me ofertando
seu
velho calor,
outra
sua glória
feita
de mistério,
outra
seu desdém,
outra
seu ciúme,
e
um sapiente amor
me
ensina a fruir
de
cada palavra
a
essência captada,
o
sutil queixume.
Mas
ai
é
o instante
de
entreabrir os olhos:
entre
beijo e boca
tudo
se evapora.
O
ciclo do dia
ora
se conclui
e
o inútil duelo
jamais
se resolve.
O
teu rosto belo,
ó
palavra, esplende
na
curva da noite
que
toda me envolve.
Tamanha
paixão
e
nenhum pecúlio.
Cerradas
as portas,
a
luta prossegue
nas
ruas do sono”.
A despeito dessa
confissão a respeito da palavra e do empenho para encontrar as mais adequadas
para cada situação, Drummond jamais se calou diante da prepotência. Nem quando
intelectuais de várias áreas, como Graciliano Ramos, por exemplo, eram
encerrados em lôbregos calabouços medievais apenas em decorrência das idéias
que defendiam, nos tristes tempos dos DIPs, dos DOPS e de tantos outros órgãos
repressores, de siglas sinistras como estas, cuja função específica era torturar
pessoas que, aliás, pagavam os salários dos torturadores, cuja função era
preservar um regime e uma ideologia contrários aos interesses nacionais.
O livro “A rosa do
povo”, de Drummond, traz poemas antológicos a esse respeito, jamais vistos em
outros poetas, mesmo os que firmaram reputação de contestadores. E o poeta de
Itabira sequer tinha essa fama. Sinta, por exemplo, caro leitor, toda a
angústia expressa no poema “O medo”:
“Em
verdade temos medo.
Nascemos
no escuro.
As
existências são poucas:
carteiro,
ditador, soldado
nosso
destino incompleto.
E
fomos educados para o medo.
Cheiramos
flores de medo.
Vestimos
panos de medo.
De
medo, vermelhos rios,
vadeamos.
Somos
apenas uns homens
e
a natureza traiu-nos.
Há
as árvores, as fábricas,
doenças
galopantes, fomes.
Refugiamo-nos
no amor,
este
célebre sentimento,
e
o amor falhou, chovia,
ventava,
fazia frio em São Paulo.
Fazia
frio em São Paulo...
Nevava.
O
medo, com sua capa,
nos
dissimula e nos berça.
Fiquei
com medo de ti
meu
companheiro moreno.
De
nós, de vós e de tudo.
Estou
com medo da honra.
Assim
nos criam burgueses.
Nosso
caminho traçado.
Por
que morrer em conjunto?
E
se todos nós vivêssemos?
Vem,
harmonia do medo,
vem,
ó terror das estradas,
susto
na noite, receio
de
águas poluídas. Muletas
do
homem só. Ajudai-nos
lentos
poderes do láudano.
Até
a canção medrosa,
se
parte, se transe, e cala-se.
Faremos
casas de medo,
duros
tijolos de medo,
medrosos
caules, repuxos,
ruas
só de medo e calma.
E
com asas de prudência,
com
resplendores covardes,
atingiremos
o cimo
de
nossa cauta subida.
O
medo, com sua física
tanto
produz: carcereiros,
edifícios,
escritores,
este
poema, outras vidas.
Tenhamos
o maior pavor.
Os
mais velhos compreendem.
O
medo cristalizou-se.
Estátuas
sábias, adeus.
Adeus,
vamos para a frente,
recuando
de olhos acesos.
Nossos
filhos tão felizes...
Fiéis
herdeiros do medo.
Eles
povoam a cidade, o mundo,
depois
do mundo, as estrelas,
dançando
o baile do medo”.
Duras palavras!
Radiografia explícita de um tempo, de um povo, de uma geração às voltas com
tiranos e tiranias, com doentes e doenças e, sobrevoando tudo isso, como urubus
à cata de carniça, com a prepotência dos que se valiam da força bruta semeando
medos por onde passavam.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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