Monday, April 29, 2013


As “bruxarias” do “Bruxo do Cosme Velho”

Pedro J. Bondaczuk

O escritor Machado de Assis – também conhecido pela alcunha de “Bruxo do Cosme Velho” –   destacou-se dos demais – do seu tempo e do nosso, por que não? – e é tido, com toda a justiça, paradigma da Literatura brasileira, por uma série de virtudes, entre as quais destaco a intemporalidade. Não só essa, é claro, mas é uma das que mais me chamam a atenção.

Embora fidelíssimo narrador dos usos e costumes de determinada época – a segunda metade do já tão remoto século XIX – soube captar e, sobretudo, transmitir com clareza e autenticidade, aquele quê de imutável no ser humano. Ou seja, seu comportamento, suas ambições, seus ideais, seus vícios e contradições. Enfim, suas virtudes e defeitos que sobrevivem à sucessão de gerações e estão mais arraigados do que nunca no homem deste terceiro milênio da era cristã.

É considerado “bruxo” por essa e por outras tantas aptidões, que só podem ser (posto que figuradamente) frutos de bruxaria. Cosme Velho, no caso, foi acrescentado a esse apelido por se tratar do bairro carioca em que o escritor residiu. 

Ler as descrições dos cenários em que Machado de Assis situou suas histórias – romances, contos e novelas – é como estar diante de uma fotografia (que, a propósito, ainda sequer havia sido inventada quando produziu sua obra e, mesmo que fosse, seria  processo de captação de imagem acessível a pouquíssimas pessoas), tamanha a perfeição com que descreveu ruas, casas, lojas, praias, morros, igrejas etc. etc. etc., notadamente do Rio de Janeiro, então capital do Império. Fez isso com riqueza ímpar de detalhes, como raros outros escritores conseguiram e conseguem fazer. E seu talento descritivo não se restringia à paisagem, mas exorbitava na apresentação ao leitor dos seus personagens.         

Tudo, neles, é autêntico. Seus trajes (que se usados hoje seriam apenas a título de fantasias de Carnaval, tanto que a moda se transformou), os acessórios de que lançavam mão (como bengalas, pincenez, cartolas e caixas de rapé, entre tantos outros utensílios, hoje peças de museu), os veículos de transporte de seu tempo (já havia bondes a tração animal, tanto que ele escreveu jocoso e delicioso manual de como entendia que os passageiros deveriam se comportar no trajeto) e, sobretudo, algo que apenas muitas décadas depois outros escritores viriam a fazer: seus perfis psicológicos. “Entrou” na mente de cada um deles, para descrever o que pensavam e sentiam, para justificar suas ações e reações, tornando-os tão verossímeis.

Todavia, a despeito dessa fidelidade á sua época, nenhuma de suas histórias, mas nenhuma mesmo, tem o sabor de coisas velhas, arcaicas, ultrapassadas, com cheiro e gosto de bolor. Podemos cruzar, a qualquer momento, e em qualquer lugar, nas ruas, nas praças, nos shoppings, nas boates, nos hotéis, nos estádios de futebol ou no metrô do Rio de Janeiro (ou de outra cidade brasileira qualquer), por exemplo, com Capitu, posto que trajada com as vestimentas deste século XXI, mas sem perder as características de mistério e dissimulação da original. Ou com Bentinho, Escobar, Helena, Iaiá Garcia e outro tipo qualquer dos inesquecíveis personagens que criou.

Isso é o que mais me fascina em Machado de Assis: a autenticidade, sem a mínima perda de atualidade. Seus livros poderão ser lidos nos séculos XXII, XXIII, XXV, XXX ou mais (se o mundo continuar existindo, claro, o que nem mesmo é provável, dados os crescentes e iminentes perigos que ameaçam nossa espécie de extinção) com idêntico interesse dos leitores desse tempo, além do nosso, por permanecerem atuais.

Estou seguro de que nossos descendentes desse futuro tão distante, caso venham de fato a existir, terão as características básicas dos tipos que o “Bruxo do Cosme Velho” criou e deu vida. Haverá, ainda, uma Capitu, um Bentinho, um Escobar, uma Helena  e tantos outros,  posto que trajados à forma desse tempo e tendo por palco as megalópoles de então.        

Machado de Assis, todavia, não foi apenas o notável (para mim inigualável) ficcionista, que ainda hoje causa assombro nos que o lêem pela primeira vez. Foi escritor eclético, que se aventurou (e fê-lo com competência) por vários outros gêneros. Em poesia, é fato, suas incursões foram esporádicas e raras. Todavia, deixou para a posteridade poemas marcantes, sobretudo sonetos. Escreveu, também, peças de teatro, embora nenhuma tenha alcançado o brilho dos seus contos e, principalmente, romances. Mas na crônica, foi mestre. Foi modelo para gerações e mais gerações de cronistas, e bons, de que nossa Literatura e nossa imprensa sempre tiveram (e felizmente têm) com fartura.

Nenhum, todavia, é comparável ao “Bruxo do Cosme Velho”. Quem mais se aproximou dele, em criatividade e até em prestígio, e quase um século depois, foi o capixaba Rubem Braga, sobre cujo centenário de nascimento já tive a oportunidade de escrever. Ainda hoje, Machado de Assis é tido, e com justiça (e quem duvidar que leia as crônicas que escreveu) como referencial, como parâmetro, como paradigma de bom cronista. Considero-o, também, magnífico jornalista.

O quê? Vocês estranharam essa afirmação?! Não deveriam. Não, leitor, não me enganei. Explico. Naqueles tempos românticos em que a imprensa ainda engatinhava (e não somente no Brasil, já que a existência de jornais diários é fenômeno relativamente recente no mundo), escritores e jornalistas se confundiam. Uns exerciam a função dos outros e vice-versa. As redações estavam repletas de “cultores das belas letras”, como se dizia na época. Aliás, praticamente todos os que   atuavam na imprensa tinham veleidades literárias. Ou já tinham livros publicados e eram expoentes dos círculos literários de então ou tinham pretensões de escrevê-los e publicá-los. Eram, pois, todos escritores-jornalistas ou jornalistas-escritores.

Praticamente toda a obra ficcional de Machado de Assis teve a “avant-premiere” em jornais e revistas. Seus romances eram publicados em fascículos, em capítulos (não sei dizer se semanais ou mensais), encartados em jornais, antes de serem reunidos, e não raro só anos depois de escritos, em livros, que eram objetos de luxo, raros, ao alcance de poucos e restritos leitores e acessíveis a pouquíssimos e mais raros ainda escritores, que tinham que fazer das tripas coração para terem esse privilégio.. Seus contos ilustravam  revistas da época, quase todas (ao menos nominalmente)  voltadas ao público feminino, embora poucas, pouquíssimas mulheres na ocasião tivessem acesso à educação, pelo menos a formal (ao contrário do que ocorre hoje, em que são maioria nas escolas e nas universidades).  

Machado de Assis lançou-se, firmou-se e projetou-se no mundo das letras em um contexto tão adverso que a maioria de nós, caso tivéssemos que encarar idênticas circunstâncias, jamais cogitaríamos em fazer literatura, em um país então hiper atrasado, posto que imenso, mas carente de tudo: de transportes, comunicação e, sobretudo, de educação, com taxas de analfabetismo absurdas, beirando os 90% da população, se não mais. Isso sem falar de sua origem.

Era mulato, filho de lavadeira, nascido numa época marcada pelo preconceito racial em que a escravidão ainda era brutal realidade, e era legal, tida e havida como coisa “normal” pela incipiente e atrasada sociedade pós-colonial brasileira, e, para completar sua desdita, era gago. E... ainda assim, chegou onde chegou. É miraculoso! Aduza-se a isso o fato de jamais ter freqüentado escola, tendo aprendido a ler  e a escrever quando aprendiz de tipógrafo. Por isso, tudo o que se disser ou se escrever sobre o talento e a genialidade de Machado de Assis será pouco, nunca será exagerado. E não só pelas circunstâncias adversas de sua vida, que soube superar com tanta determinação, mas antes e principalmente pela absurdamente alta qualidade da sua obra. Só pode, mesmo, ser coisa de “bruxo” e da mais grossa “bruxaria”.     

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