Wednesday, April 17, 2013


Sic transit gloria mundi

Pedro J. Bondaczuk

O tempo, implacável e duro, não perdoa nada e ninguém em sua ação destruidora. Nos abate, desgasta, derruba e, finalmente nos aniquila, quando menos esperamos, e não raro sem aviso. E quando o processo de decadência começa e, principalmente quando se acelera, quase nunca, sequer, nos reconhecemos ao nos olharmos no espelho ou ao vermos nossa fotografia, tamanhos são os estragos que faz em nossa aparência e, não raro, em nossas mentes. Mas essas mudanças para pior, essa decomposição física, moral e às vezes espiritual, dificilmente se dá de repente. É lenta. A princípio é imperceptível. Todavia é contínua e implacável. “Sic transit gloria mundi”...

Foi isso o que aconteceu com o pintor e escultor Salvador Dali. Foi vencido pelo tempo, que o deteriorou, abateu, humilhou e lhe tirou a alegria e o gosto de viver. E esse processo de decadência acelerou-se após a morte de Gala, sua amada e companheira, ocorrida em 1982 e adquiriu maior velocidade ainda a partir de 1984, quando seu físico fragilizado por doenças e acidentes, levou-o a se afastar das vistas do público, para conservar, pelo menos, um tantinho que fosse de dignidade.

Visto, nos últimos anos que precederam sua morte, em fugazes e raras aparições na televisão espanhola, Salvador Dali não lembrava em nada aquela figura vigorosa, desafiadora, vaidosa e falastrona que o caracterizara. Era mera sombra do que havia sido: um ancião recurvado, que não podia (ou não queria) se locomover por conta própria dependendo, para isso, de uma cadeira de rodas, pálido, magro (diria que macilento), com as mãos tremendo incontrolavelmente em conseqüência do Mal de Parkinson e que começava a ser esquecido em vida pelos que tanto o bajularam quando no auge a ponto de “divinizarem-no”. “Sic transit gloria mundi...”

Seu médico pessoal, Dr. Jesus Garcia San Miguel, disse, em entrevista concedida, na ocasião, à agência de notícias “United Press International”, em julho de 1987, que o artista parecia ter perdido a vontade de viver. Nem precisava ter dito isso. As raras pessoas que viram Salvador Dali nessa época ou que conversaram com ele, percebiam isso mesmo a anos-luz de distância. O homem estava entregue, arrasado, decepcionado, derrotado. “Não há motivo físico para que Dali não coma ou não ande. Ele simplesmente não quer. Encontrou uma cadeira confortável e decidiu passar seus últimos dias sentado nela”, sentenciou San Miguel.

O homem que costumava viver em aposentos elegantes, em suítes no Hotel Saint Regis, de Nova York, por exemplo, nos oito anos em que morou nos Estados Unidos com sua amada Gala; o sujeito elegante e sofisticado, que insistia em ostentar título de nobreza e que habitava requintados castelos na Espanha, habituou-se ao refúgio, em seus últimos anos de vida, num espartano (diria miserável) quarto exíguo, de paredes nuas, tendo por acessório, somente, uma mesa de cabeceira metálica, pegada à sua cama. Não que não tivesse dinheiro para habitar acomodações melhores. Recursos tinha, e de sobra, para viver em suítes requintadíssimas dos mais luxuosos e reservados hotéis de cinco ou até seis estrelas de qualquer parte do mundo. Vivia, porém, tão mal, por opção. Porque perdera o gosto de viver.

Nada importa tanto a um artista, seja qual for a arte que pratique, do que o reconhecimento de sua obra. Ele alimenta-se de elogios (posto que todos neguem esses surtos intermináveis de vaidade) que lhe servem de alimento do qual não pode prescindir. Quando estes mínguam e, pior, quando faltam e, pior ainda, quando se transformam em críticas constantes e unânimes, agressivas e mordazes, morre de inanição. Exagero? Pensem bem se não é assim. O artista (e presumo que não haja exceções, mas meras graduações de vaidade) é vaidoso por excelência, até por natureza. Não pelo que é, por sua aparência ou por suas posses, mas pelo que faz, porquanto põe a alma em sua obra.

E subitamente, justo na pior fase da sua vida, Salvador Dali viu-se privado desse “alimento”. Pior, passou a colecionar críticas, muitas infundadas (a maioria), maldosas ou então feitas por quem não entendia bulhufas de arte, embora julgasse ser mestre no metier e tivesse farto espaço na mídia para destilar veneno, para dar vazão a sua ação deletéria e irresponsável. Os críticos foram unânimes em elogiar, por exemplo, as obras da primeira fase de Salvador Dali. Até aí, não fizeram favor algum ao artista. Limitaram-se a chover no molhado. A qualidade da produção do pintor, dessa época, era, é e sempre será incontestável. Nela havia vida, paixão, garra e uma tensão entre um meticuloso virtuosismo e temas fugidios e irracionais, mas de originalidade a toda a prova.

Todavia, nos trabalhos posteriores, por exemplo, aos anos 50, os críticos só viram defeitos e delírios de uma mente que classificaram de insana. Claro que exageraram.  Dali produziu muitas obras geniais também nesse período, talvez até melhores do que na fase consensualmente elogiada. Por que seus detratores fizeram isso e multiplicaram seus ataques? Vá se saber! Inveja? Maldade? Ignorância? Provavelmente tudo isso e muito mais. Criticar é cômodo e fácil. Destruir o que quer que seja ou quem quer que seja, não apresenta a menor complexidade: é facílimo e acessível a qualquer imbecil detentor, se tanto, de apenas dois neurônios, tendo um deles avariado. Construir é que são elas.

Alguns de seus colegas, artistas como ele, foram pelo menos mais nobres, ou éticos, ou piedosos, ou apenas discretos (sabe-se lá), com o gênio catalão. Seu conterrâneo Joan Miró, por exemplo, disse que tinha “grande admiração pelo início de carreira” de Salvador Dali. Todavia, num gesto interpretado como de lealdade, absteve-se de comentar suas obras finais, tão combatidas e atacadas por quase todos. Essa abstenção, contudo, a mim parece a mais acerba e enfática das críticas.

E por que centralizo estas reflexões de hoje na fase decadente da vida e da obra desse artista que, à medida que o tempo passa, considero, mais do que quando ele estava no auge, um gênio? Porque sou provocador por excelência, como ele foi, posto que com foco e objetivo diferentes. Ou seja, os de induzir quem me lê a refletir, mesmo que tal reflexão venha acompanhada de impropérios contra mim.

Porque esse período amargo da vida do pintor exemplifica, com realismo nu e cru, e bem a caráter, o destino de boa parte, talvez da maior parte dos artistas que, ou morre na miséria, ou termina os dias decepcionada, amargurada e ridicularizada por imbecis medíocres, que nada fazem que preste e que destroem sonhos e fantasias dos realizadores. Por que? Talvez por instinto de vingança. Ou, suponho, não raro por pura maldade. E porque “sic transit gloria mundi...”

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