Direitos e a banalização da
morte
Pedro J. Bondaczuk
O comportamento das pessoas não acompanhou, em absoluto, o
incrível avanço das ciências físicas e biológicas, em especial após a segunda
metade do século XIX. Por esta razão, muitas das maravilhas criadas por mentes
privilegiadas, que poderiam significar a redenção da humanidade e a melhoria do
seu padrão de existência, acabaram transformadas em objetos de tortura, em
armas terríveis para que se cometam as mais abjetas ações e heresias que se
possa imaginar.
A todo o instante se ouve alguém
reivindicar um elenco de direitos, alguns legítimos e outros tantos apenas imaginados. Mas o que esses indivíduos
parecem esquecer é que cada direito sempre tem que vir, necessariamente,
acompanhado da contrapartida do respectivo dever. Os dois são indissociáveis.
Afinal, não vivemos sozinhos. Nas tantas relações que mantemos em sociedade
estamos em contínuo contato com uma infinidade de pessoas. E todas (cada uma
delas) têm os mesmos direitos que nós. E... os mesmíssimos deveres. Isso em
tese. Na prática...
Uma das principais obrigações das
pessoas, senão a principal, é a de viver e deixar viver. Parece o óbvio, não é
mesmo? E é! Ninguém tem, nem pode ter, o poder de decidir sobre quem continuará
existindo e quem deve ser eliminado, alguns até mesmo ainda no ventre materno.
Qualquer coisa que ao menos lembre este ou outro tipo similar de comportamento
é ilegítima, imoral e ilegal. É arbitrariedade sem tamanho. Contraria a lógica,
a razão e o bom-senso.
O princípio básico de Justiça, o
alicerce que lhe dá sustentação e força, preceitua que “todos” são iguais
perante a lei. O fato dessa igualdade não passar, hoje (aliás, infelizmente
sempre foi assim) de mera ficção, é que impede que, no campo do comportamento,
a humanidade acompanhe o vertiginoso
progresso da ciência.
O direito mais sagrado e
inalienável de qualquer ser é o da vida. Todavia, raras coisas são mais
banalizadas do que a morte. Mata-se a qualquer pretexto. Faz-se isso,
“legalmente”, em guerras. Aliás, se em campo de batalha, algum soldado
recusar-se a eliminar o “inimigo”, alegando razões de consciência, certamente
ou será morto por este (o que é o mais provável), ou será acusado de covardia.
Caso se enquadre neste último caso, certamente será levado à corte marcial, com
riscos concretíssimos de ser condenado a enfrentar um pelotão de fuzilamento.
Ou seja, será morto por haver se recusado a matar.
Considero esta situação como o
cúmulo dos cúmulos. Mas é um procedimento tão corriqueiro que é encarado como
“normal”. Moralmente, todavia, foge a todo e qualquer padrão ínfimo de
normalidade. Normal deveria ser ninguém matar ninguém a nenhum pretexto. Outro
tipo de extermínio admitido e tido e havido como legal é a pena de morte. Ou
seja, busca-se reparar um erro, no caso o do condenado, com outro de igual
proporção.
Há casos, é verdade, em que até o
mais intransigente e implacável defensor da sacralidade da vida chega a
balançar em suas convicções e a admitir, em situações específicas, a aplicação
da pena capital, mesmo em sociedades em que esta não conste do rol de castigos
aplicáveis aos que infringem as normas legais. Confesso que em muitas ocasiões,
face a barbaridades perpetradas por bandidos impiedosos e cruéis, cheguei (e
ainda chego) a cogitar dessa possibilidade.
Que reação da sociedade merecem,
por exemplo, indivíduos como os marginais que assassinaram, cruel, covarde e
barbaramente, a dentista em São Bernardo do Campo, cidade do ABC paulista,
queimando-a viva apenas porque, ao assaltá-la em seu consultório, constataram
que esta tinha somente R$ 30,00 na conta bancária? Há alguém que seja tão
ingênuo a ponto de achar que alguns anos de cadeia, não importa quantos, irão
promover a regeneração dos assassinos? Tenho certeza que muitos oportunistas de
plantão tentarão justificar a atitude desse bando de covardes alegando sua
condição de miséria, de falta de oportunidades, bla-bla-blá, bla-bla-blá,
bla-bla-blá. Ponham-se, porém, no lugar dos parentes da vítima. Fosse ela sua
filha, esposa ou irmã vocês teriam estômago, teriam a iniciativa, teriam
coragem de justificar essa atrocidade? Duvido!
Ninguém, mas ninguém mesmo, pode
decidir sobre a vida e a morte do próximo, ainda mais suprimindo-a de forma tão
covarde, sem proporcionar á vítima a mínima condição de defesa, e por razões
tão torpes, como aconteceu com a dentista do ABC. Pessoa alguma pode tomar
decisões absurdas desse tipo, ou seja, de exterminar a vida de um
semelhante, apenas para se apropriar do
que lhe pertence. Ou, pior ainda, como foi o caso, de agir com extrema
violência porque tal pessoa não tinha aquilo que os agressores esperavam
surrupiar dela: muito dinheiro. “O meu direito começa onde o do próximo
termina”. Isso, em tese, é o que a sociedade, por meio de seus representantes,
apregoa. Tinha que ser assim. Tinha... mas não é. Não, pelo menos, em todos os
casos.
Não tenham dúvidas, por exemplo,
que os quatro assassinos irão reivindicar – na verdade, exigir – o que entendem
serem seus direitos. Exigirão, no mínimo, a assistência de um defensor no
julgamento a que serão submetidos, como se a atrocidade que cometeram fosse
defensável. Ainda assim... serão defendidos. Se algum deles for menor de idade,
por seu turno, exigirá ser tratado com base nas normas do Estatuto da Criança e
do Adolescente. Provavelmente será “albergado” numa dessas tantas casas
eufemisticamente tratadas como de “recuperação” (e elas recuperam alguém?)
destinadas a menores infratores. Logo estará livre, talvez dentro de alguns
irrisórios meses, se não semanas, de novo na rua, podendo praticar atrocidades
semelhantes, quando não piores, à de que participou com os comparsas.
É diante de casos como este que a
minha convicção contrária à pena de morte balança. E não se trata,
infelizmente, de episódio raro. Muito pelo contrário! Não passa uma única
semana sem que crimes como este, ou mais graves, aconteçam, sem que haja formas
eficazes de prevenção. E olhem que estou citando, apenas, uma ocorrência
acontecida em apenas uma cidade e do Brasil. Quantos casos de idêntica gravidade
(ou piores) não acontecem a cada dia em tantas outras partes do País? E no
mundo? São tantos, que se faz impossível contabilizar todos, ou mesmo os mais
perversos. Fossem enredos de algum escritor de ficção seriam tidos e havidos
como inverossímeis. Mas é a dura e inflexível realidade que dá, infelizmente,
de dez a zero na mais brutal e horrorosa fantasia! O teor do romance “Crime e
castigo”, de Fedor Dostoievski, é conto da carochinha se comparado ao
assassinato da dentista em São Bernardo do Campo. Pobre humanidade!
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