Saturday, April 27, 2013


Direitos e a banalização da morte

Pedro J. Bondaczuk

O comportamento das pessoas não acompanhou, em absoluto, o incrível avanço das ciências físicas e biológicas, em especial após a segunda metade do século XIX. Por esta razão, muitas das maravilhas criadas por mentes privilegiadas, que poderiam significar a redenção da humanidade e a melhoria do seu padrão de existência, acabaram transformadas em objetos de tortura, em armas terríveis para que se cometam as mais abjetas ações e heresias que se possa imaginar.

A todo o instante se ouve alguém reivindicar um elenco de direitos, alguns legítimos e outros tantos  apenas imaginados. Mas o que esses indivíduos parecem esquecer é que cada direito sempre tem que vir, necessariamente, acompanhado da contrapartida do respectivo dever. Os dois são indissociáveis. Afinal, não vivemos sozinhos. Nas tantas relações que mantemos em sociedade estamos em contínuo contato com uma infinidade de pessoas. E todas (cada uma delas) têm os mesmos direitos que nós. E... os mesmíssimos deveres. Isso em tese. Na prática...

Uma das principais obrigações das pessoas, senão a principal, é a de viver e deixar viver. Parece o óbvio, não é mesmo? E é! Ninguém tem, nem pode ter, o poder de decidir sobre quem continuará existindo e quem deve ser eliminado, alguns até mesmo ainda no ventre materno. Qualquer coisa que ao menos lembre este ou outro tipo similar de comportamento é ilegítima, imoral e ilegal. É arbitrariedade sem tamanho. Contraria a lógica, a razão e o bom-senso.

O princípio básico de Justiça, o alicerce que lhe dá sustentação e força, preceitua que “todos” são iguais perante a lei. O fato dessa igualdade não passar, hoje (aliás, infelizmente sempre foi assim) de mera ficção, é que impede que, no campo do comportamento, a humanidade acompanhe o vertiginoso  progresso da ciência.

O direito mais sagrado e inalienável de qualquer ser é o da vida. Todavia, raras coisas são mais banalizadas do que a morte. Mata-se a qualquer pretexto. Faz-se isso, “legalmente”, em guerras. Aliás, se em campo de batalha, algum soldado recusar-se a eliminar o “inimigo”, alegando razões de consciência, certamente ou será morto por este (o que é o mais provável), ou será acusado de covardia. Caso se enquadre neste último caso, certamente será levado à corte marcial, com riscos concretíssimos de ser condenado a enfrentar um pelotão de fuzilamento. Ou seja, será morto por haver se recusado a matar.

Considero esta situação como o cúmulo dos cúmulos. Mas é um procedimento tão corriqueiro que é encarado como “normal”. Moralmente, todavia, foge a todo e qualquer padrão ínfimo de normalidade. Normal deveria ser ninguém matar ninguém a nenhum pretexto. Outro tipo de extermínio admitido e tido e havido como legal é a pena de morte. Ou seja, busca-se reparar um erro, no caso o do condenado, com outro de igual proporção.

Há casos, é verdade, em que até o mais intransigente e implacável defensor da sacralidade da vida chega a balançar em suas convicções e a admitir, em situações específicas, a aplicação da pena capital, mesmo em sociedades em que esta não conste do rol de castigos aplicáveis aos que infringem as normas legais. Confesso que em muitas ocasiões, face a barbaridades perpetradas por bandidos impiedosos e cruéis, cheguei (e ainda chego) a cogitar dessa possibilidade.

Que reação da sociedade merecem, por exemplo, indivíduos como os marginais que assassinaram, cruel, covarde e barbaramente, a dentista em São Bernardo do Campo, cidade do ABC paulista, queimando-a viva apenas porque, ao assaltá-la em seu consultório, constataram que esta tinha somente R$ 30,00 na conta bancária? Há alguém que seja tão ingênuo a ponto de achar que alguns anos de cadeia, não importa quantos, irão promover a regeneração dos assassinos? Tenho certeza que muitos oportunistas de plantão tentarão justificar a atitude desse bando de covardes alegando sua condição de miséria, de falta de oportunidades, bla-bla-blá, bla-bla-blá, bla-bla-blá. Ponham-se, porém, no lugar dos parentes da vítima. Fosse ela sua filha, esposa ou irmã vocês teriam estômago, teriam a iniciativa, teriam coragem de justificar essa atrocidade? Duvido! 

Ninguém, mas ninguém mesmo, pode decidir sobre a vida e a morte do próximo, ainda mais suprimindo-a de forma tão covarde, sem proporcionar á vítima a mínima condição de defesa, e por razões tão torpes, como aconteceu com a dentista do ABC. Pessoa alguma pode tomar decisões absurdas desse tipo, ou seja, de exterminar a vida de um semelhante,  apenas para se apropriar do que lhe pertence. Ou, pior ainda, como foi o caso, de agir com extrema violência porque tal pessoa não tinha aquilo que os agressores esperavam surrupiar dela: muito dinheiro. “O meu direito começa onde o do próximo termina”. Isso, em tese, é o que a sociedade, por meio de seus representantes, apregoa. Tinha que ser assim. Tinha... mas não é. Não, pelo menos, em todos os casos.

Não tenham dúvidas, por exemplo, que os quatro assassinos irão reivindicar – na verdade, exigir – o que entendem serem seus direitos. Exigirão, no mínimo, a assistência de um defensor no julgamento a que serão submetidos, como se a atrocidade que cometeram fosse defensável. Ainda assim... serão defendidos. Se algum deles for menor de idade, por seu turno, exigirá ser tratado com base nas normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Provavelmente será “albergado” numa dessas tantas casas eufemisticamente tratadas como de “recuperação” (e elas recuperam alguém?) destinadas a menores infratores. Logo estará livre, talvez dentro de alguns irrisórios meses, se não semanas, de novo na rua, podendo praticar atrocidades semelhantes, quando não piores, à de que participou com os comparsas.

É diante de casos como este que a minha convicção contrária à pena de morte balança. E não se trata, infelizmente, de episódio raro. Muito pelo contrário! Não passa uma única semana sem que crimes como este, ou mais graves, aconteçam, sem que haja formas eficazes de prevenção. E olhem que estou citando, apenas, uma ocorrência acontecida em apenas uma cidade e do Brasil. Quantos casos de idêntica gravidade (ou piores) não acontecem a cada dia em tantas outras partes do País? E no mundo? São tantos, que se faz impossível contabilizar todos, ou mesmo os mais perversos. Fossem enredos de algum escritor de ficção seriam tidos e havidos como inverossímeis. Mas é a dura e inflexível realidade que dá, infelizmente, de dez a zero na mais brutal e horrorosa fantasia! O teor do romance “Crime e castigo”, de Fedor Dostoievski, é conto da carochinha se comparado ao assassinato da dentista em São Bernardo do Campo. Pobre humanidade!  

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