Justiça sem fronteiras
Pedro J. Bondaczuk
O secretário geral das
Nações Unidas, Javier Perez de Cuellar, homem experiente e vivido, calejado nos
problemas de diversas espécies que envolvem a humanidade, chorou, ontem, de
emoção, no acampamento de refugiados de Korem, no Norte da Etiópia.,
Naquele
local, milhares de etíopes, sem nenhuma esperança ou ambição que não seja uma
mínima porção de comida para não morrerem de fome, aglomeram-se promiscuamente,
atacados por pulgas e piolhos e sofrendo as intempéries do clima tórrido,
durante o dia, e extremamente frio, à noite, à espera de ajuda internacional.
Perez
de Cuellar é um homem acostumado a cenas chocantes. Não fora ele originário de
um país do Terceiro Mundo, o próprio exercício do seu cargo o levou a diversos
acampamentos como os que visitou ontem, tanto no Camboja, como na América
Central e em outras localidades da África. Mas nunca se soube antes que fosse
levado a tal emoção, a ponto de não conter publicamente as lágrimas.
Cenas
chocantes, dignas da pena de um Dante Aligheri e que serviriam facilmente como
modelos para a descrição do “Inferno”, da sua magistral “Divina Comédia”,
marcam essa miserável localidade etíope. E os que conseguem se arrastar até lá,
mesmo estando no grau máximo da degradação do ser humano, ainda podem ser
considerados verdadeiros privilegiados, diante de uma infinidade que morrem
pelo caminho, abandonam crianças esquálidas e anestesiadas por tanto sofrimento
à própria sorte e não conseguem nem mesmo uma cova rasa para sepultar seus
restos mortais, expostos ao sol, servindo de repasto às aves de rapina e aos
chacais.
Oito
milhões de etíopes podem morrer de fome dentro de no máximo cinco meses, se a
humanidade não se mobilizar para evitar isso. Para que se tenha uma idéia, é como
se toda a população da zona urbana de São Paulo, ou de Nova York, ou então de
Moscou, viesse a desaparecer repentinamente. E não é apenas a Etiópia que corre
esse trágico risco.
Trinta
e cinco milhões de africanos, em pelo menos seis países, têm diante de si
idêntica perspectiva. E mesmo os que não vierem a morrer à míngua, estarão para
sempre condenados a uma condição subumana, com a inteligência irremediavelmente
atrofiada, transformando-se em eternos problemas (que, aliás, é obrigação de
todos resolver). É o caso de se perguntar: onde a solidariedade humana? Onde o
desprendimento, a caridade e o senso fraterno pregados por todas as religiões?
Quando
se entra em contato com realidades desse porte é que, às vezes, se tem até
vergonha de ser humano. De se estabelecer ideais fantasiosos e efêmeros de
acúmulo de riquezas materiais (que a nossa própria condição de mortais impede
que sejam permanentes), de buscar posições sociais ilusórias e vazias e de
correr atrás disso que o escritor Garcia Marquez definiu como “um peixe escorregadio e fugaz”, chamado
poder.
Javier
Perez de Cuellar chorou diante da miséria etíope. Que essas lágrimas, porém,
venham a se transformar em providências e que as palavras que disse no
acampamento de Korem sejam lema dos verdadeiros seres humanos, os que ainda
cultivam o senso de responsabilidade e da solidariedade com o próximo: “É
preciso haver justiça sem fronteiras”.
(Artigo publicado na página 10,
Internacional, do Correio Popular, em 10 de novembro de 1984).
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