Tuesday, April 02, 2013


Conversa ao pé do ouvido

Pedro J. Bondaczuk

Carlos Drummond de Andrade, em vários de seus poemas, parece estar conversando com a gente, a despeito das metáforas de que se utiliza, com propriedade e pertinência. Confidencia-nos, mineiramente, ao pé do ouvido, coisas que alega sentir, que nos são tão familiares, por também sentirmos, mas que conservamos em segredo, por receio de revelar a quem quer que seja e não sermos compreendidos. Tratam-se, geralmente, de fraquezas que gostaríamos de não ter, de sonhos que acreditamos impossíveis, de amores que nutrimos, mas negamos, por acharmos inviável a tão ansiada correspondência e vai por aí afora.
Agimos assim, negando o que somos, sentimos e/ou pensamos, por não termos a compreensão da vida que os poetas, instintivamente, têm. Eles não receiam em escancarar suas deficiências, temores e vulnerabilidades e nem desnudar-se em público. Sabem, por instinto, que somos admirados por nossas virtudes, todavia, somente somos amados (quando somos) por nossos defeitos (desde que não sejam aqueles que eventualmente prejudiquem a terceiros) e, principalmente, por nossas fraquezas. Tolice nossa querermos ostentar a força que não temos ou a perfeição da qual estamos distantes milhões, bilhões de anos-luz. Bobagem maior ainda é tentar esconder deficiências, em vez de procurar corrigi-las. Mas agimos assim costumeiramente.

Muitos que a esta altura estão torcendo o nariz e dizendo aos seus botões que minhas observações a esse propósito são bobagens, no íntimo sabem que tenho razão. Mas teimam em manter esse comportamento hipócrita que não os leva a lugar algum.

Em determinados poemas, Drummond narra fatos, faz observações e chama nossa atenção para determinados detalhes de coisas que julgamos triviais, sem importância para nossa vida, mas que, quando submetidas a análise cuidadosa e sincera se revelam não só importantes, como essenciais. As grandes verdades são, geralmente, simples. Nós é que temos a mania de complicar tudo. Complicação é o nosso esporte favorito. A beleza também, via de regra, anda de mãos dadas com a simplicidade. Drummond entendia isso como poucos. Ou poucos entendem isso como ele.

Um exemplo dessa parceria entre beleza e simplicidade o poeta mineiro expressa, com elegância e pureza de alma, por exemplo, no seu conhecidíssimo “Poema das sete faces”, que diz:

“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus?
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos,
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era deus
se sabias que eu era fraco?!

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é o meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo”.

Esse tom delicioso de colóquio, essa conversa íntima ao pé do ouvido (parece, até, ao ler seus versos, que estamos ouvindo a voz calma, com carregado sotaque mineiro, de Drummond), que acima de tudo mostra capacidade ímpar, rara, de observação do poeta, sobre tudo o que se passa no mundo ao seu redor (e não no que envolva políticos renomados, mas mal afamados e suas políticas furadas, que a televisão, o rádio, os jornais e revistas trazem até nós diariamente; não o dos carros e homens-bombas, dos seqüestros e das guerras por dá-cá-toma-lá; não o das eternas e vazias promessas de dias melhores que nunca chegam; não o da Aids, do câncer, da superpopulação mundial, do turismo sexual, da prostituição de meninas, dos refugiados vivendo em dantescos acampamentos onde a miséria é escrachada) é o que nos fascina, nos encanta, nos prende e nos torna cúmplices de seus versos.

Creio que não haja uma única pessoa, das que leram e lêem Drummond, que não tenha sentido, ou não sinta, secretamente, bem no fundinho da consciência, como pecadilho inconfessável, uma certa inveja, ou mais, um desejo enorme e irresistível de ter escrito a maioria dos seus versos. Eu sinto isso e de forma recorrente. Gostaria de ter sido o autor, por exemplo, desta “Confidência do itabirano”:

“Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas, que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!!”     

Agora digam-me, com franqueza: Pode um poeta que faz uma confissão tão profunda, em tom de confidência,  das suas fraquezas e inquietações (que são também as nossas, sem tirar e nem pôr) ser estereotipado como alienado? Pode um homem que conhece os segredos de nossa alma mais do que qualquer psiquiatra ou psicanalista, mais do que nós mesmos e que os revela cruamente, mas com simplicidade e até beleza (aquela beleza que machuca de tão profunda que é), simulando como sendo os da sua alma, receber essa esdrúxula e estúpida classificação? Ora, ora, ora.

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: