Conversa ao pé do
ouvido
Pedro
J. Bondaczuk
Carlos Drummond de
Andrade, em vários de seus poemas, parece estar conversando com a gente, a
despeito das metáforas de que se utiliza, com propriedade e pertinência.
Confidencia-nos, mineiramente, ao pé do ouvido, coisas que alega sentir, que
nos são tão familiares, por também sentirmos, mas que conservamos em segredo,
por receio de revelar a quem quer que seja e não sermos compreendidos.
Tratam-se, geralmente, de fraquezas que gostaríamos de não ter, de sonhos que
acreditamos impossíveis, de amores que nutrimos, mas negamos, por acharmos
inviável a tão ansiada correspondência e vai por aí afora.
Agimos assim, negando o
que somos, sentimos e/ou pensamos, por não termos a compreensão da vida que os
poetas, instintivamente, têm. Eles não receiam em escancarar suas deficiências,
temores e vulnerabilidades e nem desnudar-se em público. Sabem, por instinto,
que somos admirados por nossas virtudes, todavia, somente somos amados (quando
somos) por nossos defeitos (desde que não sejam aqueles que eventualmente
prejudiquem a terceiros) e, principalmente, por nossas fraquezas. Tolice nossa
querermos ostentar a força que não temos ou a perfeição da qual estamos
distantes milhões, bilhões de anos-luz. Bobagem maior ainda é tentar esconder
deficiências, em vez de procurar corrigi-las. Mas agimos assim costumeiramente.
Muitos que a esta
altura estão torcendo o nariz e dizendo aos seus botões que minhas observações
a esse propósito são bobagens, no íntimo sabem que tenho razão. Mas teimam em
manter esse comportamento hipócrita que não os leva a lugar algum.
Em determinados poemas,
Drummond narra fatos, faz observações e chama nossa atenção para determinados
detalhes de coisas que julgamos triviais, sem importância para nossa vida, mas
que, quando submetidas a análise cuidadosa e sincera se revelam não só
importantes, como essenciais. As grandes verdades são, geralmente, simples. Nós
é que temos a mania de complicar tudo. Complicação é o nosso esporte favorito.
A beleza também, via de regra, anda de mãos dadas com a simplicidade. Drummond
entendia isso como poucos. Ou poucos entendem isso como ele.
Um exemplo dessa
parceria entre beleza e simplicidade o poeta mineiro expressa, com elegância e
pureza de alma, por exemplo, no seu conhecidíssimo “Poema das sete faces”, que
diz:
“Quando
nasci, um anjo torto
desses
que vivem na sombra
disse:
Vai Carlos! Ser gauche na vida.
As
casas espiam os homens
que
correm atrás de mulheres.
A
tarde talvez fosse azul
não
houvesse tantos desejos.
O
bonde passa cheio de pernas:
pernas
brancas pretas amarelas.
Para
que tanta perna, meu Deus?
pergunta
meu coração.
Porém
meus olhos
não
perguntam nada.
O
homem atrás do bigode
é
sério, simples e forte.
Quase
não conversa.
Tem
poucos, raros amigos,
o
homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu
Deus, por que me abandonaste
se
sabias que eu não era deus
se
sabias que eu era fraco?!
Mundo
mundo vasto mundo,
se
eu me chamasse Raimundo
seria
uma rima, não seria solução.
Mundo
mundo vasto mundo,
mais
vasto é o meu coração.
Eu
não devia te dizer
mas
essa lua
mas
esse conhaque
botam
a gente comovido como o diabo”.
Esse tom delicioso de
colóquio, essa conversa íntima ao pé do ouvido (parece, até, ao ler seus
versos, que estamos ouvindo a voz calma, com carregado sotaque mineiro, de
Drummond), que acima de tudo mostra capacidade ímpar, rara, de observação do
poeta, sobre tudo o que se passa no mundo ao seu redor (e não no que envolva
políticos renomados, mas mal afamados e suas políticas furadas, que a televisão,
o rádio, os jornais e revistas trazem até nós diariamente; não o dos carros e
homens-bombas, dos seqüestros e das guerras por dá-cá-toma-lá; não o das
eternas e vazias promessas de dias melhores que nunca chegam; não o da Aids, do
câncer, da superpopulação mundial, do turismo sexual, da prostituição de
meninas, dos refugiados vivendo em dantescos acampamentos onde a miséria é
escrachada) é o que nos fascina, nos encanta, nos prende e nos torna cúmplices
de seus versos.
Creio que não haja uma
única pessoa, das que leram e lêem Drummond, que não tenha sentido, ou não
sinta, secretamente, bem no fundinho da consciência, como pecadilho
inconfessável, uma certa inveja, ou mais, um desejo enorme e irresistível de
ter escrito a maioria dos seus versos. Eu sinto isso e de forma recorrente.
Gostaria de ter sido o autor, por exemplo, desta “Confidência do itabirano”:
“Alguns
anos vivi em Itabira.
Principalmente
nasci em Itabira.
Por
isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa
por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta
por cento de ferro nas almas.
E
esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A
vontade de amar, que me paralisa o trabalho
vem
de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E
o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é
doce herança itabirana.
De
Itabira trouxe prendas diversas, que ora te ofereço:
esta
pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este
São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este
couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça
baixa...
Tive
ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje
sou funcionário público.
Itabira
é apenas uma fotografia na parede.
Mas
como dói!!”
Agora digam-me, com
franqueza: Pode um poeta que faz uma confissão tão profunda, em tom de
confidência, das suas fraquezas e
inquietações (que são também as nossas, sem tirar e nem pôr) ser estereotipado
como alienado? Pode um homem que conhece os segredos de nossa alma mais do que
qualquer psiquiatra ou psicanalista, mais do que nós mesmos e que os revela
cruamente, mas com simplicidade e até beleza (aquela beleza que machuca de tão
profunda que é), simulando como sendo os da sua alma, receber essa esdrúxula e
estúpida classificação? Ora, ora, ora.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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