Wednesday, April 03, 2013


Ironia eficaz

Pedro J. Bondaczuk

Uma das características que mais aprecio no estilo de Carlos Drummond de Andrade é a sutil ironia com que trata de determinados temas, em vez de recorrer à crítica escancarada, muitas vezes feroz e selvagem, de boa parte dos escritores. Trata-se de forma não somente mais elegante, mas também mais eficaz de criticar o que é criticável. Com isso, faz do leitor cúmplice de seu texto e ele sente-se, até, co-autor dele.

Aliás, gosto de tudo o que Drummond escreveu, tanto em prosa, quanto (e principalmente) em verso, o que não me torna, óbvio, nada original. Apenas não remo contra a maré, já que nosso poeta maior, em termos de aprovação, é praticamente consenso. Só não gosta dele quem nunca leu o que escreveu e, mesmo assim, caso tenho ouvido alguém declamar qualquer de seus poemas, mesmo que não confesse abertamente, não tem como não gostar.

Parte das presentes considerações (as já feitas até aqui e as que farei na sequência) foi extraída de um longo ensaio que escrevi e que publiquei no Correio Popular de Campinas, na edição de 12 de julho (um domingo) de 1987. Um amigo comum, meu e do poeta, enviou-lhe essa página de jornal. Creio que ele a apreciou (assim espero), pois em 10 de agosto daquele ano, fui surpreendido com um cartão de agradecimento, sucinto, mas gentilíssimo, de Drummond. Uma semana depois, consternado, fiquei sabendo que esse gênio da literatura mundial, amável e sábio, havia morrido. Dá para imaginar o choque que levei!

Não são raros os poemas de Drummond em que ele se expressou de maneira deliciosamente irônica (a ironia sutil e inteligente é uma delícia!), para dissimular a ternura que sentia pelas fraquezas humanas (que admitia serem as suas), ou para atenuar sua ira em relação aos tiranos, aos canalhas, aos covardes que abusavam (e abusam) da força para explorar e humilhar os mais fracos. Um exemplo do que afirmo é este primor de “humor negro”, simplezinho, mas que esconde em sua simplicidade uma verdade irretorquível. Trata-se deste poema que intitulou de “Anedota búlgara”:

“Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade”.

Este é o Drummond que tanto admiro  e que nunca deixou (e jamais deixará) de ser moderno, posto que é eterno. Os tiranos são assim mesmo, como esse tal czar dos seus versos. Não têm senso de proporção e muito menos de ridículo. Tratam a pão-de-ló seus cães e suas aves (o que fazem muito bem, porquanto os animais merecem respeito e cuidado), mas “caçam pessoas”, apenas por diversão, numa atitude canalha e covarde. Basta analisar as ações dos ditadores que, mesmo que em número menor nestes anos iniciais da segunda década do século XXI, ainda existem em profusão mundo afora.

São inúmeros os poemas de Carlos Drummond de Andrade com conotações políticas. Não dessa política com “p” minúsculo, que tanto repudiamos, a mesquinha, a de partidos sem conteúdo, a dos conchavos, dos tapinhas nas costas, dos pedidos de votos com jeito de barganha e de ofertas de empregos cujos salários são bancados pelos nossos impostos em troca do que deveria ser espontâneo. Nem a da corrupção ostensiva ou disfarçada sob  capa de legalidade, a do clientelismo imoral e da ausência quase total (ou completa mesmo) de mínimo senso ético.

Os poemas de Drummond de cunho político retratam o sentimento do homem comum, daquele anônimo, o das ruas, face aos acontecimentos de que participa passivamente, sem que tenha meios de alterar sua dinâmica viciosa, seu curso costumeiro e muito menos suas danosas conseqüências. Em um período em que os meios de comunicação estiveram censurados – quer na ditadura getulista, quer nos anos de chumbo de domínio dos militares – em que os artistas (pelo menos boa parte deles) foram calados ou, pior, cooptados para que “louvaminhassem” os ditadores de plantão e tecessem loas a um país que, como sociedade, pouco tinha para ser louvado, o poeta itabirano, corajosamente, expressou o que via e o que sentia, sem medo das conseqüências.

Fê-lo, todavia, com classe, com talento, com sutileza, com genialidade e com ironia. Os simples, os observadores e os que não se deixaram obcecar por paixões minúsculas, entenderam-no. E o poeta jamais se omitiu e muito menos engrossou o “cordão dos puxa-sacos” que então cada vez aumentava mais. Quem viveu esse período, sabe do que estou falando. Com sua sutil ironia, Drummond colocou as coisas nos seus devidos lugares. Como neste poema, intitulado “Hino Nacional”, pouco divulgado, mas no qual racionalizou a inoportunidade do ufanismo calhorda que tomava conta de um país submetido a uma intolerável tirania. O poeta escreveu:

“Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com as águas dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil!

O que faremos importando francesas,
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa,
com fogão e aquecedor elétricos, piscinas,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras: nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano  e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!!!”

Que lição de racionalidade, exposta com tamanha clarividência e aguçada percepção! E isso é ser alienado (acusação, recorrente, aos poetas), estereótipo que costuma ser generalizado?! É difícil, é muito árduo, entender o que nossa sociedade desejava e deseja, estruturada como historicamente sempre esteve, gerando milhares e milhares, um punhado de milhões de subcidadãos, vítimas de um dissimulado “apartheid” social, que sequer têm acesso a migalhas das riquezas que geram para o proveito de inúteis parasitas.

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