Ironia eficaz
Pedro
J. Bondaczuk
Uma das características
que mais aprecio no estilo de Carlos Drummond de Andrade é a sutil ironia com
que trata de determinados temas, em vez de recorrer à crítica escancarada,
muitas vezes feroz e selvagem, de boa parte dos escritores. Trata-se de forma
não somente mais elegante, mas também mais eficaz de criticar o que é
criticável. Com isso, faz do leitor cúmplice de seu texto e ele sente-se, até,
co-autor dele.
Aliás, gosto de tudo o que Drummond escreveu, tanto em prosa, quanto (e principalmente) em verso, o que não me torna, óbvio, nada original. Apenas não remo contra a maré, já que nosso poeta maior, em termos de aprovação, é praticamente consenso. Só não gosta dele quem nunca leu o que escreveu e, mesmo assim, caso tenho ouvido alguém declamar qualquer de seus poemas, mesmo que não confesse abertamente, não tem como não gostar.
Parte das presentes
considerações (as já feitas até aqui e as que farei na sequência) foi extraída
de um longo ensaio que escrevi e que publiquei no Correio Popular de Campinas,
na edição de 12 de julho (um domingo) de 1987. Um amigo comum, meu e do poeta,
enviou-lhe essa página de jornal. Creio que ele a apreciou (assim espero), pois
em 10 de agosto daquele ano, fui surpreendido com um cartão de agradecimento,
sucinto, mas gentilíssimo, de Drummond. Uma semana depois, consternado, fiquei
sabendo que esse gênio da literatura mundial, amável e sábio, havia morrido. Dá
para imaginar o choque que levei!
Não são raros os poemas de Drummond em que ele se expressou de maneira deliciosamente irônica (a ironia sutil e inteligente é uma delícia!), para dissimular a ternura que sentia pelas fraquezas humanas (que admitia serem as suas), ou para atenuar sua ira em relação aos tiranos, aos canalhas, aos covardes que abusavam (e abusam) da força para explorar e humilhar os mais fracos. Um exemplo do que afirmo é este primor de “humor negro”, simplezinho, mas que esconde em sua simplicidade uma verdade irretorquível. Trata-se deste poema que intitulou de “Anedota búlgara”:
“Era
uma vez um czar naturalista
que
caçava homens.
Quando
lhe disseram que também se caçam borboletas,
ficou
muito espantado
e
achou uma barbaridade”.
Este é o Drummond que
tanto admiro e que nunca deixou (e
jamais deixará) de ser moderno, posto que é eterno. Os tiranos são assim mesmo,
como esse tal czar dos seus versos. Não têm senso de proporção e muito menos de
ridículo. Tratam a pão-de-ló seus cães e suas aves (o que fazem muito bem,
porquanto os animais merecem respeito e cuidado), mas “caçam pessoas”, apenas
por diversão, numa atitude canalha e covarde. Basta analisar as ações dos
ditadores que, mesmo que em número menor nestes anos iniciais da segunda década
do século XXI, ainda existem em profusão mundo afora.
São inúmeros os poemas de
Carlos Drummond de Andrade com conotações políticas. Não dessa política com “p”
minúsculo, que tanto repudiamos, a mesquinha, a de partidos sem conteúdo, a dos
conchavos, dos tapinhas nas costas, dos pedidos de votos com jeito de barganha
e de ofertas de empregos cujos salários são bancados pelos nossos impostos em
troca do que deveria ser espontâneo. Nem a da corrupção ostensiva ou disfarçada
sob capa de legalidade, a do
clientelismo imoral e da ausência quase total (ou completa mesmo) de mínimo
senso ético.
Os poemas de Drummond
de cunho político retratam o sentimento do homem comum, daquele anônimo, o das
ruas, face aos acontecimentos de que participa passivamente, sem que tenha
meios de alterar sua dinâmica viciosa, seu curso costumeiro e muito menos suas
danosas conseqüências. Em um período em que os meios de comunicação estiveram
censurados – quer na ditadura getulista, quer nos anos de chumbo de domínio dos
militares – em que os artistas (pelo menos boa parte deles) foram calados ou,
pior, cooptados para que “louvaminhassem” os ditadores de plantão e tecessem
loas a um país que, como sociedade, pouco tinha para ser louvado, o poeta
itabirano, corajosamente, expressou o que via e o que sentia, sem medo das
conseqüências.
Fê-lo, todavia, com
classe, com talento, com sutileza, com genialidade e com ironia. Os simples, os
observadores e os que não se deixaram obcecar por paixões minúsculas,
entenderam-no. E o poeta jamais se omitiu e muito menos engrossou o “cordão dos
puxa-sacos” que então cada vez aumentava mais. Quem viveu esse período, sabe do
que estou falando. Com sua sutil ironia, Drummond colocou as coisas nos seus
devidos lugares. Como neste poema, intitulado “Hino Nacional”, pouco divulgado,
mas no qual racionalizou a inoportunidade do ufanismo calhorda que tomava conta
de um país submetido a uma intolerável tirania. O poeta escreveu:
“Precisamos
descobrir o Brasil!
Escondido
atrás das florestas,
com
as águas dos rios no meio,
o
Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos
colonizar o Brasil!
O
que faremos importando francesas,
muito
louras, de pele macia,
alemãs
gordas, russas nostálgicas para
garçonetes
dos restaurantes noturnos.
E
virão sírias fidelíssimas.
Não
convém desprezar as japonesas...
Precisamos
educar o Brasil.
Compraremos
professores e livros,
assimilaremos
finas culturas,
abriremos
dancings e subvencionaremos as elites.
Cada
brasileiro terá sua casa,
com
fogão e aquecedor elétricos, piscinas,
salão
para conferências científicas.
E
cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos
louvar o Brasil.
Não
é só um país sem igual.
Nossas
revoluções são bem maiores
do
que quaisquer outras: nossos erros também.
E
nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os
Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...
Precisamos
adorar o Brasil!
Se
bem que seja difícil caber tanto oceano
e tanta solidão
no
pobre coração já cheio de compromissos...
Se
bem que seja difícil compreender o que querem esses homens
por
que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos,
precisamos esquecer o Brasil!!!”
Que lição de
racionalidade, exposta com tamanha clarividência e aguçada percepção! E isso é
ser alienado (acusação, recorrente, aos poetas), estereótipo que costuma ser
generalizado?! É difícil, é muito árduo, entender o que nossa sociedade
desejava e deseja, estruturada como historicamente sempre esteve, gerando
milhares e milhares, um punhado de milhões de subcidadãos, vítimas de um
dissimulado “apartheid” social, que sequer têm acesso a migalhas das riquezas
que geram para o proveito de inúteis parasitas.
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