Thursday, April 11, 2013


Passeando com Quintana

Pedro J. Bondaczuk

O cerne da temática poética de Mário Quintana é essencialmente (posto que não exclusivamente) urbano. Reflete a Cidade dos Sonhos, na feliz conceituação comparativa feita pelo escritor Moacyr Scliar no prefácio do livro “Mário Quintana, Vida e Obra”, de Nelson Fachinelli. O poeta retratou, como ninguém, com sutileza e rara capacidade de observação, ambientes, situações, cenários e uma infinidade de pessoas da sua amada Porto Alegre. Exemplos? São muitos. Cito, porém, um em particular. Cito este trecho do poema em prosa “O telegrama”: “As árvores da praça, o vento e a chuva embrulharam todas as vozes do dicionário num sussurro prolongado e confuso, anterior a qualquer sintaxe”.

Querem mais? Que tal estes versos do poema intitulado o “O mapa”, publicado no “Correio do Povo” de Porto Alegre, de 14 de novembro de 1964:

“Olho no mapa da cidade
como quem examinasse
a anatomia de um corpo...
(E nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
das ruas de Porto Alegre
onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
tanta nuance de paredes,
há tanta moça bonita
nas ruas que não andei!
(E há uma rua encantada
que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
poeira ou folha levada
no vento da madrugada,
serei um pouco de nada
invisível, delicioso
que fez com que teu ar
pareça mais um olhar,
suave mistério amoroso,
cidade do meu andar
deste já tão longo andar
e talvez do meu repouso...”

Mas Quintana passou, também, por outras ruas, que não da sua amada Porto Alegre e nem da Alegrete natal. Caminhou por vias lúgubres e sombrias dos sentimentos inexpressos que ousou e soube expressar. Perambulou por alamedas escondidas do que não se tem coragem de confessar, mas que, com sinceridade e falta de pudor confessou. Circulou pelas majestosas praças da expressão do amor, com flores que muitas vezes escondem espinhos e que são ameaçadas de serem sufocadas por ervas daninhas. O poeta, todavia, arrancou o mato sem titubear. Regou os canteiros de ternura. Deslumbrou-se com o viço da flor do amor.

Acompanhemos Quintana em outro passeio. Antes de tudo, antes de perambular pela alma, no intuito de compreendê-la, nosso anfitrião alertou, a nós, seus reverentes leitores, por meio da sua inspirada veia poética, que a despeito de eventual grandeza que possamos ostentar, somos, somente, humanos, nada mais que isso. Nada mais que animais, posto que dotados de raciocínio e capacidade de compreensão. Somos vulneráveis, por exemplo, a paixões que não conseguimos controlar e das quais nos tornamos escravos. Somos atormentados por temores irracionais e emoções antagônicas e paradoxais. Somos passivos de erros e de contradições. Em suma, somos humanos... Nada além de humanos.

Ao esquadrinhar a alma, em busca de compreensão, nesse seu atento passeio, nos servindo de aplicado guia, Quintana dá de cara com “o desespero e a queixa de um estranho animal perdido, único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre, desesperado, noite em fora, como para escapar à sua orfandade e solidão de monstro”. E esse bicho... somos nós.

A seguir, esbarra em um dos quatro “gigantes da alma”, o medo, motivado ou sem motivo, de algo conhecido ou nem tanto:

“Medo de gesto
mudo.
Medo da fala
surda. “

Na sequência, tropeça no pé de outro titã, a ira, e nos aconselha a propósito: “Não te irrites por mais que te fizerem... Estuda a frio o coração alheio”. De repente, vislumbra a saudade e confessa, quase sem perceber, como que num monólogo:

“Hoje encontrei dentro de um, livro uma velha carta amarelecida,
rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria.
Eu tenho um
medo
horrível
a essas marés montantes do passado...”

E Quintana segue sua ronda pelo vasto mundo dos sentimentos, às vezes cruzando com o “Anjo Malaquias”, outras chateado por ter que sacrificar o verbo: “Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página: Por isso a palavra escrita é sempre triste...” De repente, constata o quão deliciosamente ridículos nos tornamos – e não importa nossa condição ou cultura – quando estamos amando. E confidencia:

“Se variam na casca, idêntico é o miolo.
Julguem-se, embora de diversa trama:
ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
que o mais sutil dos sábios quando ama”.

Súbito, o poeta pára. Vê, assustado, um intruso no telhado da casa em frente. Alarme! Seria um ladrão? Pode ser! Ou seria um louco, indiferente ao risco de quebrar o pescoço? Dúvida! Contudo, observando melhor, percebe tratar-se de algo ainda mais insólito. Olha, para se certificar, examina a figura, com toda a cautela, torna a olhar com atenção redobrada e conclui, sem ter mais dúvida alguma:

“Em cima do meu telhado,
pirulim, lulim, lulim,
um anjo todo molhado
soluça no seu flautim...”

Esse era Quintana: sábio, simples, bem-humorado, não raro irônico, mas, sobretudo, gênio na nobilíssima arte de poetar.

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