Passeando com Quintana
Pedro
J. Bondaczuk
O cerne da temática
poética de Mário Quintana é essencialmente (posto que não exclusivamente)
urbano. Reflete a Cidade dos Sonhos, na feliz conceituação comparativa feita
pelo escritor Moacyr Scliar no prefácio do livro “Mário Quintana, Vida e Obra”,
de Nelson Fachinelli. O poeta retratou, como ninguém, com sutileza e rara
capacidade de observação, ambientes, situações, cenários e uma infinidade de
pessoas da sua amada Porto Alegre. Exemplos? São muitos. Cito, porém, um em
particular. Cito este trecho do poema em prosa “O telegrama”: “As árvores da
praça, o vento e a chuva embrulharam todas as vozes do dicionário num sussurro
prolongado e confuso, anterior a qualquer sintaxe”.
Querem mais? Que tal
estes versos do poema intitulado o “O mapa”, publicado no “Correio do Povo” de
Porto Alegre, de 14 de novembro de 1964:
“Olho
no mapa da cidade
como
quem examinasse
a
anatomia de um corpo...
(E
nem que fosse meu corpo!)
Sinto
uma dor infinita
das
ruas de Porto Alegre
onde
jamais passarei...
Há
tanta esquina esquisita,
tanta
nuance de paredes,
há
tanta moça bonita
nas
ruas que não andei!
(E
há uma rua encantada
que
nem em sonhos sonhei...)
Quando
eu for, um dia desses,
poeira
ou folha levada
no
vento da madrugada,
serei
um pouco de nada
invisível,
delicioso
que
fez com que teu ar
pareça
mais um olhar,
suave
mistério amoroso,
cidade
do meu andar
deste
já tão longo andar
e
talvez do meu repouso...”
Mas Quintana passou,
também, por outras ruas, que não da sua amada Porto Alegre e nem da Alegrete
natal. Caminhou por vias lúgubres e sombrias dos sentimentos inexpressos que
ousou e soube expressar. Perambulou por alamedas escondidas do que não se tem
coragem de confessar, mas que, com sinceridade e falta de pudor confessou.
Circulou pelas majestosas praças da expressão do amor, com flores que muitas
vezes escondem espinhos e que são ameaçadas de serem sufocadas por ervas
daninhas. O poeta, todavia, arrancou o mato sem titubear. Regou os canteiros de
ternura. Deslumbrou-se com o viço da flor do amor.
Acompanhemos Quintana
em outro passeio. Antes de tudo, antes de perambular pela alma, no intuito de
compreendê-la, nosso anfitrião alertou, a nós, seus reverentes leitores, por
meio da sua inspirada veia poética, que a despeito de eventual grandeza que possamos
ostentar, somos, somente, humanos, nada mais que isso. Nada mais que animais,
posto que dotados de raciocínio e capacidade de compreensão. Somos vulneráveis,
por exemplo, a paixões que não conseguimos controlar e das quais nos tornamos
escravos. Somos atormentados por temores irracionais e emoções antagônicas e
paradoxais. Somos passivos de erros e de contradições. Em suma, somos
humanos... Nada além de humanos.
Ao esquadrinhar a alma,
em busca de compreensão, nesse seu atento passeio, nos servindo de aplicado
guia, Quintana dá de cara com “o desespero e a queixa de um estranho animal
perdido, único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre,
desesperado, noite em fora, como para escapar à sua orfandade e solidão de
monstro”. E esse bicho... somos nós.
A seguir, esbarra em um
dos quatro “gigantes da alma”, o medo, motivado ou sem motivo, de algo
conhecido ou nem tanto:
“Medo
de gesto
mudo.
Medo
da fala
surda.
“
Na sequência, tropeça
no pé de outro titã, a ira, e nos aconselha a propósito: “Não te irrites por
mais que te fizerem... Estuda a frio o coração alheio”. De repente, vislumbra a
saudade e confessa, quase sem perceber, como que num monólogo:
“Hoje
encontrei dentro de um, livro uma velha carta amarelecida,
rasguei-a
sem procurar ao menos saber de quem seria.
Eu
tenho um
medo
horrível
a
essas marés montantes do passado...”
E Quintana segue sua
ronda pelo vasto mundo dos sentimentos, às vezes cruzando com o “Anjo
Malaquias”, outras chateado por ter que sacrificar o verbo: “Cada palavra é uma
borboleta morta espetada na página: Por isso a palavra escrita é sempre
triste...” De repente, constata o quão deliciosamente ridículos nos tornamos –
e não importa nossa condição ou cultura – quando estamos amando. E confidencia:
“Se
variam na casca, idêntico é o miolo.
Julguem-se,
embora de diversa trama:
ninguém
mais se parece a um verdadeiro tolo
que
o mais sutil dos sábios quando ama”.
Súbito, o poeta pára.
Vê, assustado, um intruso no telhado da casa em frente. Alarme! Seria um
ladrão? Pode ser! Ou seria um louco, indiferente ao risco de quebrar o pescoço?
Dúvida! Contudo, observando melhor, percebe tratar-se de algo ainda mais
insólito. Olha, para se certificar, examina a figura, com toda a cautela, torna
a olhar com atenção redobrada e conclui, sem ter mais dúvida alguma:
“Em
cima do meu telhado,
pirulim,
lulim, lulim,
um
anjo todo molhado
soluça
no seu flautim...”
Esse era Quintana:
sábio, simples, bem-humorado, não raro irônico, mas, sobretudo, gênio na
nobilíssima arte de poetar.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment