Saturday, April 06, 2013


Realismo nu e cru

Pedro J. Bondaczuk

Quando incursionou pela temática social – o que fez com muita freqüência – Carlos Drummond de Andrade sempre pintou, com as tintas do mais rigoroso realismo, nu e cru, quadros contundentes, de abandono e miséria, de vastíssima parcela da população brasileira. São cenas com as quais nos deparamos diariamente e que, de tanto ver, sequer prestamos atenção. Inconscientemente, chegamos mesmo a considerá-las “normais”. Evidentemente, não são.

Fugimos, posto que sequer deliberadamente, da realidade social, encerrando-nos em nosso próprio mundinho, imersos em nossos problemas que são ridículos quando comparados aos de tantas pessoas, nos valendo de vários mecanismos de fuga (futebol, baladas, shows de rock etc.etc.etc.) como que hermeticamente trancados em um quarto, na mais absoluta solidão. Sentimo-nos, de fato, sós, embora em meio a crescentes multidões das megalópolis em que vegetamos. Mesmo transitando em meio a tanta gente, não conseguimos nos relacionar, a não ser superficialmente, como se essas pessoas com as quais cruzamos a todo o momento não fossem reais, mas meros hologramas, ou imagens de algum filme, das quais não conseguimos gravar na mente nem rostos, nem vozes, nem expressões, quanto mais  vidas e carências. A miséria ao redor não nos comove e nem mobiliza. Agimos como se não tivéssemos nada com isso. Mas temos.

O poeta, todavia, tido e havido por muitos como um sujeito alienado, que vive com a cabeça nas nuvens, encerrado em uma torre de marfim, ao contrário de nós, está sempre atento a tudo o que vê (há, evidente, como em tudo na vida, exceções). Não somente percebe o sofrimento alheio, mas se condói dele. Tenta sugerir soluções e, frustrado, percebe que nada pode fazer, senão denunciar, protestar, tentar abrir os olhos da sociedade para tantas mazelas e distorções.

Drummond expressou em versos o que via ao seu redor e “deu nome aos bois”. Exemplo? Este poema intitulado “Competição”, publicado em seu livro “Corpo”, um dos últimos que publicou (datado de 1985), em que trata dos “garimpeiros do lixo”:

“Os garotos, os cães e os urubus
guerreiam em torno do esplendor do lixo.
Não, não fui eu que vi. Foi o Ministro
do Interior”.

No poema “Banquete”, Drummond explora o tema da miséria de forma ainda mais explícita, ao escrever:

“Dia sim, dia não o caminhão
despeja 800 quilos de galinha podre,
restos do frigorífico,
no pátio do Matruco,
bem na cara do Morro da Caixa D’água
e do Morro do Tuiuti.
O azul das aves é mais sombrio
que o azul do céu, mas sempre azul
conversível em comida.
Baixam favelados deslumbrados,
cevam-se no monturo.
Que morador resiste
à sensualidade de comer galinha azul?”.

Poucos conhecem este poema de Drummond e muito menos outros tantos, tão contundentes quanto. Afinal, essas palavras duras, refletindo uma realidade horrenda, tendem a ferir a sensibilidade das elites, que se chocam com versos realistas, mas que ignoram a realidade que os suscita. E depois, os poetas é que são alienados!!!

Drummond admite que aglomerados miseráveis, como nossas favelas, mocambos e outros tantos nomes que lhes possam ser dados, não se restringem ao Brasil. E, à certa altura, pergunta: “Isso consola?”. Claro que não. Considero este poema, intitulado “Dentro de nós”, um dos mais cáusticos já escritos pelo poeta de Itabira, cujos versos sombrios retratam uma realidade dantesca, que muitos e muitos e muitos se recusam a ver – e que já foi muito pior antes que um presidente operário, ainda combatido de todas as formas por uma “elite” que defende que as coisas sejam deixadas como sempre foram resgatasse milhões de brasileiros da miséria absoluta – e que dizem:

“Guarda estes nomes: bidonville, taudis, slum,
witchtown, sanky-town,
callampas, cogumelos, corraldas,
hongos, barrio paracaidista, jacale,
cantegril, bairro de lata, gourbville,
champa, court, villa miséria
favela
tudo a mesma coisa sob o mesmo sol,
por este largo estreito do mundo.
Isto consola? É inevitável, é prescrito,
lei que não se pode revogar
sem desconhecer?
Não, isto é medonho,
faz adiar nossa esperança
da coisa ainda sem nome,
que nem partidos, ideologias, utopias
sabem realizar.

Dentro de nós é que a favela cresce,
e, seja discurso, decreto, poema
que contra ela se levante,
não pára de crescer”.

Para arrematar, não farei mais nenhum comentário. Drummond dispensa explicações, racionalizações e considerações complementares para poder ser compreendido. Só não o compreende quem, por razões óbvias, deliberadamente não quer compreender. Deixarei, pois, o poeta “falar”, mediante este poema intitulado “A maior”, que diz:

“A maior!
A maior!
Qual, enfim, a maior
favela brasileira?
A Rocinha carioca?
Alagados, baiana?
Um analista indaga:
em área construída
(se construção se chama
o sopro sobre a terra
movediça volúvel
ou sobre água viscosa)?
A maior, em viventes,
bichos, homens, mulheres?
Ou maior em oferta
de mão de obra fácil?
Maior em aparelhos
de rádio e de tevê?
Maior em esperança
ou maior em descrença?
A maior em paciência,
a maior em canção,
rainha das favelas,
imperatriz-penúria?
Tantos itens... O júri
declara-se perplexo
e resolve esquivar-se
a qualquer veredicto,
pois que somente Deus
(ou melhor, o Diabo)
é capaz de saber
das mores a maior”.

Depois de ler, analisar, sentir, viver essas linhas será que ainda há alguém que se atreva a afirmar que “todo poeta é alienado”? Teria coragem de estereotipar Drummond dessa forma tão burra e genérica? A genialidade, o realismo e a capacidade de observação do poeta de Itabira faz cair no mais completo descrédito e ridículo quem teimar em fazer uma afirmação tão imbecil.

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