Realismo nu e cru
Pedro
J. Bondaczuk
Quando incursionou pela
temática social – o que fez com muita freqüência – Carlos Drummond de Andrade
sempre pintou, com as tintas do mais rigoroso realismo, nu e cru, quadros
contundentes, de abandono e miséria, de vastíssima parcela da população
brasileira. São cenas com as quais nos deparamos diariamente e que, de tanto
ver, sequer prestamos atenção. Inconscientemente, chegamos mesmo a
considerá-las “normais”. Evidentemente, não são.
Fugimos, posto que
sequer deliberadamente, da realidade social, encerrando-nos em nosso próprio
mundinho, imersos em nossos problemas que são ridículos quando comparados aos
de tantas pessoas, nos valendo de vários mecanismos de fuga (futebol, baladas,
shows de rock etc.etc.etc.) como que hermeticamente trancados em um quarto, na
mais absoluta solidão. Sentimo-nos, de fato, sós, embora em meio a crescentes
multidões das megalópolis em que vegetamos. Mesmo transitando em meio a tanta
gente, não conseguimos nos relacionar, a não ser superficialmente, como se
essas pessoas com as quais cruzamos a todo o momento não fossem reais, mas
meros hologramas, ou imagens de algum filme, das quais não conseguimos gravar
na mente nem rostos, nem vozes, nem expressões, quanto mais vidas e carências. A miséria ao redor não nos
comove e nem mobiliza. Agimos como se não tivéssemos nada com isso. Mas temos.
O poeta, todavia, tido
e havido por muitos como um sujeito alienado, que vive com a cabeça nas nuvens,
encerrado em uma torre de marfim, ao contrário de nós, está sempre atento a
tudo o que vê (há, evidente, como em tudo na vida, exceções). Não somente
percebe o sofrimento alheio, mas se condói dele. Tenta sugerir soluções e,
frustrado, percebe que nada pode fazer, senão denunciar, protestar, tentar abrir
os olhos da sociedade para tantas mazelas e distorções.
Drummond expressou em
versos o que via ao seu redor e “deu nome aos bois”. Exemplo? Este poema
intitulado “Competição”, publicado em seu livro “Corpo”, um dos últimos que
publicou (datado de 1985), em que trata dos “garimpeiros do lixo”:
“Os
garotos, os cães e os urubus
guerreiam
em torno do esplendor do lixo.
Não,
não fui eu que vi. Foi o Ministro
do
Interior”.
No poema “Banquete”,
Drummond explora o tema da miséria de forma ainda mais explícita, ao escrever:
“Dia
sim, dia não o caminhão
despeja
800 quilos de galinha podre,
restos
do frigorífico,
no
pátio do Matruco,
bem
na cara do Morro da Caixa D’água
e
do Morro do Tuiuti.
O
azul das aves é mais sombrio
que
o azul do céu, mas sempre azul
conversível
em comida.
Baixam
favelados deslumbrados,
cevam-se
no monturo.
Que
morador resiste
à
sensualidade de comer galinha azul?”.
Poucos conhecem este
poema de Drummond e muito menos outros tantos, tão contundentes quanto. Afinal,
essas palavras duras, refletindo uma realidade horrenda, tendem a ferir a
sensibilidade das elites, que se chocam com versos realistas, mas que ignoram a
realidade que os suscita. E depois, os poetas é que são alienados!!!
Drummond admite que
aglomerados miseráveis, como nossas favelas, mocambos e outros tantos nomes que
lhes possam ser dados, não se restringem ao Brasil. E, à certa altura,
pergunta: “Isso consola?”. Claro que não. Considero este poema, intitulado
“Dentro de nós”, um dos mais cáusticos já escritos pelo poeta de Itabira, cujos
versos sombrios retratam uma realidade dantesca, que muitos e muitos e muitos
se recusam a ver – e que já foi muito pior antes que um presidente operário,
ainda combatido de todas as formas por uma “elite” que defende que as coisas
sejam deixadas como sempre foram resgatasse milhões de brasileiros da miséria
absoluta – e que dizem:
“Guarda
estes nomes: bidonville, taudis, slum,
witchtown,
sanky-town,
callampas,
cogumelos, corraldas,
hongos,
barrio paracaidista, jacale,
cantegril,
bairro de lata, gourbville,
champa,
court, villa miséria
favela
tudo
a mesma coisa sob o mesmo sol,
por
este largo estreito do mundo.
Isto
consola? É inevitável, é prescrito,
lei
que não se pode revogar
sem
desconhecer?
Não,
isto é medonho,
faz
adiar nossa esperança
da
coisa ainda sem nome,
que
nem partidos, ideologias, utopias
sabem
realizar.
Dentro
de nós é que a favela cresce,
e,
seja discurso, decreto, poema
que
contra ela se levante,
não
pára de crescer”.
Para arrematar, não
farei mais nenhum comentário. Drummond dispensa explicações, racionalizações e
considerações complementares para poder ser compreendido. Só não o compreende
quem, por razões óbvias, deliberadamente não quer compreender. Deixarei, pois,
o poeta “falar”, mediante este poema intitulado “A maior”, que diz:
“A
maior!
A
maior!
Qual,
enfim, a maior
favela
brasileira?
A
Rocinha carioca?
Alagados,
baiana?
Um
analista indaga:
em
área construída
(se
construção se chama
o
sopro sobre a terra
movediça
volúvel
ou
sobre água viscosa)?
A
maior, em viventes,
bichos,
homens, mulheres?
Ou
maior em oferta
de
mão de obra fácil?
Maior
em aparelhos
de
rádio e de tevê?
Maior
em esperança
ou
maior em descrença?
A
maior em paciência,
a
maior em canção,
rainha
das favelas,
imperatriz-penúria?
Tantos
itens... O júri
declara-se
perplexo
e
resolve esquivar-se
a
qualquer veredicto,
pois
que somente Deus
(ou
melhor, o Diabo)
é
capaz de saber
das
mores a maior”.
Depois de ler,
analisar, sentir, viver essas linhas será que ainda há alguém que se atreva a
afirmar que “todo poeta é alienado”? Teria coragem de estereotipar Drummond
dessa forma tão burra e genérica? A genialidade, o realismo e a capacidade de
observação do poeta de Itabira faz cair no mais completo descrédito e ridículo
quem teimar em fazer uma afirmação tão imbecil.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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