Pedro J. Bondaczuk
A história contemporânea do Camboja é impossível de ser contada se quem se propuser a escrevê-la omitir a figura de Norodom Sihanouk. Esse personagem é tão importante, que mesmo após abdicar do trono, em 7 de outubro de 2004, em favor de um de seus 13 filhos (foi casado com sete mulheres), Norodom Sihamoni, continuou (e continua, aos 89 anos de idade) a influenciar decisivamente a política do seu país. Tanto que recebeu o título de “Pai da Pátria”, que ostenta com orgulho e que de fato merece, por tudo o que fez.
Sihanouk, que nasceu em 31 de outubro de 1922, filho do rei Norodom Siamant e da rainha Sisowatti Kossamak, foge completamente do estereótipo que há em torno da monarquia. Esteve no trono em duas oportunidades distintas.
A primeira vez que foi rei foi no período a partir de 1941 – quando o Camboja sequer era independente, mas integrava, ao lado do Vietnã e do Laos, a colônia francesa da Cochinchina, também conhecida como Indochina – até 1955, já após a independência, quando abdicou do trono em favor do pai, mas conservou o cargo de primeiro-ministro, ao qual cabia o governo de fato. Isso durou até ser deposto pelo golpe de Estado de 1970, comandado pelo líder do Khmer Azul, Lon Nol, oportunidade em que se exilou na China.
Na segunda vez que Sihanouk ocupou o trono do Camboja foi já depois do fim do regime do Khmer Vermelho e do genocídio comandado por Pol Pot, da ocupação vietnamita do seu país que se seguiu e da posterior restauração da independência, em 1993, reinado este que perdurou até 2004, quando abdicou a favor do filho. Todavia, mesmo nos anos em que não esteve exilado, e que não era oficialmente o rei, ocupou vários cargos políticos. Tanto que seu nome consta do Guiness Book, o célebre livro dos recordes. E sabem por que? Por ter sido o homem que mais cargos políticos ocupou no mundo.
Como se vê, quando se afirma que é impossível escrever a história do Camboja contemporâneo sem dedicar capítulos e mais capítulos a esse rei, que foge de todo e qualquer estereótipo de monarquia, não há nenhum exagero. A melhor caracterização de Sihanouk eu encontrei na enciclopédia eletrônica Wikipédia, que diz a seu respeito: “Norodom se tornou rapidamente famoso pelo seu estilo de vida extravagante e fora do comum. Compositor diletante e diretor de uma orquestra de jazz, era apaixonado por carros, além de grande amante de mulheres, tanto que teve seis esposas. A sua sétima e última mulher foi Mônica Izzi, de origem italiana, francesa e cambojana”.
Isso não é tudo. Foi um dos raros reis (se é que existe outro) simpatizante ferrenho do comunismo, a despeito dos contratempos que essa simpatia lhe trouxe, notadamente no período da Guerra Fria e na época em que a Guerra do Vietnã “incendiava” todo o Sudeste Asiático. Como se vê, contradição e extravagâncias foram e ainda são suas marcas registradas. Entre suas atitudes, digamos, “modernas”, cite-se que foi o primeiro político cambojano a ter um site pessoal na internet.
O ex-chefe do escritório da agência de notícias britânica Reuter em Saigon (atual Ho-Chi-Mihn), o neozelandês Nicholas Turner, em artigo que escreveu para a revista “Seleções”, publicado em julho de 1969, definiu dessa maneira o líder do Camboja, figura hoje lendária no imaginário popular: “Um rei exuberante que deixou o trono para ingressar na política, como ‘real-socialista’, entusiasta de basquetebol e voleibol, diretor de cinema que estrela seus próprios filmes, dor de cabeça para Washington e Pequim e líder amado de seu povo”. Vocês conhecem outro rei assim? Eu não conheço e nunca ouvi dizer que houvesse outro que sequer o arremedasse.
Turner, em seu artigo, descreveu da seguinte forma os esforços de Sihanouk para garantir a independência do seu país: “Procura proteger o Camboja de seus vizinhos tradicionalmente hostis, a Tailândia e o Vietnã, e evitar ser esmagado entre ‘o malho e a bigorna’ da América e da China Vermelha”. Realista quanto à precariedade de sua situação, o rei, que mesmo sem coroa nunca perdeu a majestade, observou, em certa ocasião, em conversa com correspondentes internacionais: “Quando dois elefantes estão brigando, a formiga tem que sair de perto”. Eu acrescentaria: “quando isso for possível”. No caso do Camboja não foi.
Entre outras coisas, Sihanouk não pôde evitar um dos maiores genocídios do século XX, e praticado, justamente, pelo regime a que serviu, mesmo que apenas na condição de chefe de Estado, função meramente decorativa. Explico. Em 1975, quando o Khmer Vermelho conquistou o poder, o rei sem coroa pôde regressar do exílio ao seu país.
Como aliado de Pol Pot, recebeu esse cargo, sem nenhum real poder político, do regime comunista radical. A pergunta que sempre se fez e ainda se faz é: Sihanouk não viu as atrocidades que estavam sendo cometidas contra o povo, que dizia tanto amar (e que sempre o amou, mesmo após o genocídio)? Não percebeu o intolerável “expurgo ideológico” em andamento, que resultou na morte de pelo menos 1,5 milhão de cambojanos? Se não percebeu, sua imagem de político atento e antenado fica arranhada. Se percebeu e nada fez, a situação é muito pior. Nessa hipótese, Sihanouk foi cúmplice, por omissão, das atrocidades de Pol Pot.
Os cambojanos, todavia, por alguma razão que desconheço, isentaram-no de culpa nos terríveis massacres denunciados tanto no livro, quanto no filme, ambos com o mesmo título e tratando do mesmo assunto, “Os gritos do silêncio”. Tanto que, quando a “tempestade” passou, quando o Camboja reconquistou a perdida independência após a invasão vietnamita ao seu território, foi, de imediato, reconduzido ao trono (em 1993), que deixou, apenas, no momento que quis, em 2004.
Norodon Sihanouk lembra, de certa maneira (guardadas as devidas proporções, claro), a figura do nosso primeiro imperador, Dom Pedro I, a quem o Brasil deve sua independência, principalmente quanto às suas estroinices, não características de membros da monarquia de qualquer parte do mundo. Lógico que o agora rei sem coroa do Camboja é muito mais culto e escolado do que o filho de Dom João VI. Todavia, Dom Pedro I leva vantagem sobre o cambojano num aspecto. Ao retornar a Portugal, do qual subtraiu sua mais importante colônia, combateu o irmão Dom Miguel, tornou-se rei português, com o título de Dom Pedro IV e, principalmente, não participou, por ação ou por omissão, de nenhum genocídio no Brasil. Mas a comparação, guardadas as proporções, reitero, procede.
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