Pedro J. Bondaczuk
Gosto de pessoas idealistas que, enfrentando todos os obstáculos possíveis e imagináveis e generalizada oposição dos alienados e néscios, não abrem mão de suas convicções, notadamente quando estas são nobres, de caráter altruístico, de defesa dos direitos humanos, da individualidade e, sobretudo, de combate a todo e qualquer tipo de opressão. Não é uma posição fácil e nem muito atrativa, já que não oferece nenhuma vantagem pessoal a quem a assume e, pelo contrário, expõe quem tem essa ousadia a toda sorte de riscos e perseguições.
O poeta inglês William Blake foi um desses rebeldes “com causa”. É verdade que, a julgar por sua biografia, era um homem, digamos, um tanto “excêntrico”. E não somente por remar contra a maré, mas por algumas atitudes não convencionais, para dizer o mínimo. Entre tantas e tantas excentricidades, por exemplo, garantia ter, frequentemente, visões com santos e anjos. É provável que isso se devesse a algum desvio psicológico ou desarranjo mental, sabe-se lá. Normal é quer não era. Nem por isso, todavia, a obra que nos legou é menos relevante ou mesmo incoerente. Pelo contrário, reputo-o como dos melhores e mais inspirados poetas ingleses (e não ingleses também) do século XVIII.
William Blake nasceu em Londres, em 28 de novembro de 1757. Na época do seu nascimento, o Império Britânico – o tal que era tão extenso que em seu território o sol jamais se punha – estava no auge da prosperidade e do poderio militar. Estava em andamento, principalmente na ilha, o que viria a ser classificado, anos depois, pelos historiadores, como a “Revolução Industrial”. As indústrias inglesas, com massiva mecanização, apresentavam produção crescente, que aumentava de ano para ano, cujo crescimento só tinha “o céu por limite”. O dinheiro circulava farto e fácil em seu território. “Então estava tudo às mil maravilhas”, concluirá o leitor precipitado, que atente apenas às aparências.
Bem, a prosperidade era evidente e crescente, mas (sempre há um “mas”) para os detentores de capitais. Ou seja, para os industriais, comerciantes, exportadores etc. Já para a massa trabalhadora... Era um inferno. Os operários eram explorados ao limite de suas forças. Não havia um horário fixo de trabalho, de oito horas, em cinco dias da semana, como agora. Férias, então, era algo inconcebível. As jornadas ficavam por conta, exclusivamente, da imaginação (e da ambição) dos patrões.
É certo que a maior parte da massa trabalhadora não reclamava. Não pelo menos com a intensidade com que hoje se reivindicam direitos, que então eram inexistentes. O proletariado dava-se por satisfeito por encontrar trabalho, cuja remuneração era suficiente, pelo menos, para o próprio sustento e o da família. A maior parte desses trabalhadores era originária do campo, onde trabalhava muito mais e ganhava muito menos. Na literatura inglesa desse período predominava a mesma alienação que na sociedade. Os escritores produziam textos que, lidos por quem não conhecesse a realidade, concluiria que todos viviam no paraíso na Terra.
Foi aí que William Blake se destacou. Era dos raros escritores que via, e se opunha com veemência, a pobreza ao seu redor, as injustiças sociais e o que entendia se tratar da “negatividade do poder” da Igreja Anglicana, que pouco ou nada fazia em favor da horda de miseráveis, de espoliados, de verdadeiros escravos brancos, posto que se tratasse de escravidão consentida por escravizados e encarada como natural por escravizadores.
O que é de se estranhar é que o poeta sequer tinha razões pessoais para assumir essa militância por justiça social. Nasceu se não em berço de ouro, em uma família de classe média, que usufruía da prosperidade econômica dos detentores de capitais. O pai era fabricante de roupas e sua fábrica ia de vento em popa. A Bíblia teve profunda influência na vida e na forma de pensar de William Blake. Jovem talentoso, além de poeta, foi tipógrafo, pintor e ilustrador. Escreveu, compôs e ilustrou mais de vinte livros. E fez ilustrações não apenas para as obras que redigiu, mas para as de outros tantos autores.
Aliás, morreu trabalhando. Isso ocorreu em 12 de agosto de 1827. Nesse dia, apesar de muito doente, trabalhou exaustivamente ilustrando “A divina comédia” de Dante Aligheri. Tão logo terminou o trabalho, sentiu-se mal e morreu em seguida. Blake era considerado “estranho” nos meios literários. Por isso, apesar de intensa produção, todas tidas hoje como da mais alta qualidade artística, nunca fez fama. E, por conseqüência, também não fez fortuna.
Levou vida espartana, caracterizada por grandes dificuldades financeiras. Não chegou a cair na miséria, mas esteve muito próximo disso. Apesar de tudo isso, no entanto, Blake logrou grande façanha para as circunstâncias: ao morrer, não deixou uma única dívida para a viúva pagar. Soube viver com pouco e trabalhou até o último suspiro. Foi, como se vê, homem raro e exemplar, a despeito de ser excêntrico.
O poeta teve um grande desgosto sentimental que, por estranho que pareça, mudou sua vida para melhor. Explico. Ele foi rejeitado pela mulher por quem nutria profundíssima paixão. Demorou a se recuperar desse baque. Acabou casando com uma jovem muito pobre, além de tudo analfabeta, mas que se revelou um ser humano extraordinário, desses que não abundam por aí. Seu nome? Catherine Boucher.
A jovem esposa aprendeu a ler e escrever com o marido, além da profissão de tipógrafa. E foi seu braço direito, seu esteio, sua mais leal e fiel ajudante, quer no lar, quer na arte, até o dia da morte do poeta, além de se destacar como esposa devotada e apaixonada. Por questão de justiça, portanto, sempre que se aborda a biografia de Blake, é forçoso mencionar Catherine.
O excêntrico, mas idealista, poeta só teve os méritos reconhecidos muito tempo depois da morte. Quem de fato é competente e talentoso, mais cedo ou mais tarde, recebe o reconhecimento de quem ama e entende de literatura. Pena que para ele tenha chegado tão tardiamente. Selecionei, no excelente site “Citador” – WWW.citador.pt – três poemas de William Blake, com tradução do português Hélio Oswaldo Alves, que comprovam o talento desse “rebelde com causa”. O primeiro é este:
O Jardim do Amor
Tendo ingressado no Jardim do Amor,
Deparei-me com algo inusitado:
haviam construído uma Capela
No meio, onde eu brincava no gramado.
E ela estava fechada; "Tu não podes"
Era a legenda sobre a porta escrita.
Voltei-me então para o Jardim do Amor,
Onde crescia tanta flor bonita,
E recoberto o vi de sepulturas
E lousas sepulcrais, em vez de flores;
E em vestes negras e hediondas os padres faziam rondas,
E atavam com nó espinhoso meus desejos e meu gozo.
O segundo poema de William Blake que trago à sua apreciação é este:
Londres
Vagueio por estas ruas violadas,
Do violado Tamisa ao derredor,
E noto em todas as faces encontradas
Sinais de fraqueza e sinais de dor.
Em toda a revolta do Homem que chora,
Na Criança que grita o pavor que sente,
Em todas as vozes na proibição da hora,
Escuto o som das algemas da mente.
Dos Limpa-chaminés o choro triste
As negras Igrejas atormenta;
E do pobre Soldado o suspiro que persiste
Escorre em sangue p'los Palácios que sustenta.
Mas nas ruas da noite aquilo que ouço mais
É da jovem Prostituta o seu fadário,
Maldiz do tenro Filho os tristes ais,
E do Matrimônio insulta o carro funerário.
Finalmente, o terceiro poema de Blake que tenho a satisfação de partilhar com você, leitor de bom gosto, é este:
A Imagem Divina
Compaixão, Pena, Paz & Amor,
Todos lhes rezam no seu sofrimento;
E a estas virtudes de tanto fulgor
Entregam o seu agradecimento.
Compaixão, Pena, Paz & Amor
É Deus, nosso pai adorado,
Compaixão, Pena, Paz & Amor
É o Homem, seu filho amado.
Tem Compaixão humano coração,
E tem a Pena uma face humana,
Amor, a forma divina de eleição
E a Paz, o traje que irmana.
Todo o homem, em todo o clima,
Que, com dor, reza como é capaz,
Reza à forma humana divina,
Amor, Compaixão, Pena & Paz.
A humana forma amar é um dever,
Para os ateus, os turcos, os judeus;
Compaixão, Amor & Pena, haja onde houver,
Também é lá que encontrareis Deus.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment