Pedro J. Bondaczuk
A desagregação do Camboja, que resultou num dos maiores, sistemáticos e cruéis genocídios do século XX (repleto deles) – denunciado ao mundo por um livro, “Os gritos do silêncio” de Chistopher Hudson e, sobretudo, por um filme do mesmo nome, dirigido por Roland Joffé e com roteiro de Bruce Robinson – começou em fins de março de 1970. Foi quando o príncipe Norodon Sihanouk, mesmo contando com o apoio da China de Mao Tse Tung, foi deposto por um golpe de Estado, comandado por uma das três facções khmers, que há muito estavam de olho no poder.
Com a deposição, chegava ao fim um dos governos mais estáveis do Sudeste Asiático, região que, por décadas, foi marcada pela instabilidade política, ou seja, por guerras, violência, devastação, má administração e, por conseqüência, por muita e incontrolável corrupção. O monarca deposto era considerado um dos governantes mais hábeis, serenos, equilibrados e, sobretudo, esclarecidos do século XX.
Na primeira semana de abril, Sihanouk ensaiou, ainda, uma contra-ofensiva que, todavia, fracassou. As forças que lhe eram leais tiveram que se render diante de um adversário melhor armado e, sobretudo, treinado na Tailândia pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos: o Khmer Azul. O rei queria reconquistar o trono não porque fosse apegado ao poder, como tantos tiranos o são, mas pela convicção de que ninguém conseguiria, como ele, manter o equilíbrio entre forças tão antagônicas e inconciliáveis, que se digladiavam em toda a região do Sudeste Asiático. Sihanouk estava seguro que apenas ele, com o prestígio interno e internacional que gozava, conseguiria evitar que o Camboja fosse “esmagado”.
O Khmer Azul era um movimento paramilitar, na verdade um grupo guerrilheiro, financiado e apoiado pelos Estados Unidos. E explica-se essa postura norte-americana. Essa facção era ferrenhamente anticomunista. Destaque-se que, na ocasião, a Guerra do Vietnã estava em plena efervescência. Sihanouk empenhava-se para que o conflito que envolvia os vizinhos não contaminasse o Camboja. Era tarefa que parecia impossível e que na sequência dos acontecimentos se revelou que de fato era. O príncipe, em desespero de causa, tentou, ainda, manter contato com o Khmer Vermelho, facção guerrilheira liderada por Pol Pot, comunista radical, aliada do Vietnã do Norte, numa derradeira tentativa de recuperar o poder. Não teve sucesso. Mal ele sabia que seria justamente este grupo, ao qual pretendia se aliar (e que não conseguiu), que cometeria a maior e mais inimaginável atrocidade contra o povo cambojano, pelo qual jurava tanto amor. Mas, nesta altura... Sihanouk já era carta fora do baralho.
Não precipitemos, porém, a narrativa. Em 1º de maio de 1970, tropas dos Estados Unidos e do então Vietnã do Sul invadiram o território cambojano, com o apoio logístico do Khmer Azul. O pretexto para a invasão – que provocou renhida batalha diplomática na Organização das Nações Unidas e condenação de boa parte da opinião pública internacional – foi a de desmantelar uma rede de abastecimento utilizada pelo Vietnã do Norte para levar suprimentos à guerrilha vietcong no Vietnã do Sul. Essa rota era conhecida como “Trilha Ho-Chi-Mihn”. Cortava parte do Camboja no sentido Norte-Sul.
Consumada a invasão, Norodon Sihanouk deixou, de vez, seu país, asilando-se em Pequim. Enviou, da China, mensagem aos cambojanos, prometendo que iria voltar. Não voltou. Na esperança de que a situação se revertesse a seu favor, o príncipe chegou a formar um governo no exílio. De nada adiantou. A luta continuava intensa no Camboja. Pressionados pela opinião pública internacional, Estados Unidos e Vietnã do Sul retiraram suas tropas do Camboja. Antes não retirassem.
Em 9 de outubro de 1970, houve novo lance nesse complicado “jogo de xadrez” político. Outra facção, que se acreditava “neutra”, o Khmer Branco, tomou o poder. Foi mais longe: acabou oficialmente com a monarquia, proclamando a República e, talvez sonhando com as glórias do passado, do século XV, mudou o nome do país para República Khmer. Todavia, esse grupo pecava por falta de coesão. Várias facções internas se digladiavam, cada qual querendo se mostrar (ou pelo menos assim se julgando) mais importante do que outra. O Camboja vivia um período de suma instabilidade, o que prejudicava todas as atividades, afetando, em especial, sua já frágil economia. Grupos guerrilheiros diversos combatiam em várias partes do território cambojano.
Desse modo, com lutas constantes, violência, sangue, corrupção e incertezas, passaram-se cinco anos, que transformaram o outrora “reino feliz” de Sihanouk em uma sucursal do inferno. Mas o pior ainda estava por vir. E veio de forma avassaladora, como uma erupção de um vulcão. Ocorreu em 17 de abril de 1975, apenas catorze dias antes dos últimos soldados norte-americanos empreenderem apressada fuga de Saigon, abandonando, de vez, seu ex-aliado, o Vietnã do Sul – que deixou de existir como país independente, incorporado que foi pelo Vietnã do Norte que, dessa forma, reunificou a ex-colônia francesa na Ásia – à própria sorte.
Nessa data fatídica, as tropas do Khmer Vermelho, sem encontrar maiores resistências, marcharam, triunfantes, pelas ruas de Phnom Pehn, instalando no poder o seu líder, Pol Pot, de tristíssima (trágica) memória para a população cambojana talvez pela eternidade. A ação repressiva, generalizada, da qual o livro e o filme do mesmo nome “Os gritos do silêncio” dão conta, com tantos e macabros detalhes, que se seguiu ao novo golpe foi assim descrita por um ex-diretor da Anistia Internacional nos Estados Unidos: “Foi um novo capítulo do totalitarismo no século XX – autogenocídio e a substancial destruição de um povo por seus próprios líderes”.
Num livro publicado em 1984, “Quality of Mercy” (“A natureza da compaixão”), o jornalista inglês, William Scowcross, narra em detalhes o drama da população cambojana. Foi outro dos “gritos do silêncio”, que, todavia, também caiu em ouvidos moucos e que não sensibilizou a que pretendia, poderia e deveria sensibilizar: à opinião pública internacional e, notadamente, às potências, que poderiam evitar o trágico, o absurdo e inominável genocídio no Camboja, mas que nada fizeram. Maldita omissão!
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