Pedro J. Bondaczuk
A apregoada modernidade, que o ex-presidente Fernando Collor disse que estava implantando no País, agravou um problema social que já era gravíssimo, e que agora adquire dimensões caóticas, embora a questão, por ser incômoda, raramente venha a público. Trata-se da multidão de pessoas sem teto – conhecidas no mundo todo pela expressão inglesa “homeless”, já que o fenômeno é típico, em maior ou menor grau, da maioria das grandes cidades mundiais – que vegeta, sem perspectivas ou esperanças, pelas ruas, dando graças a Deus a cada dia que sobrevive.
A revista “Dignitas Salutis”, do Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas, Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas do Estado de São Paulo, em sua edição dezembro/janeiro (o órgão é bimestral), traz uma reportagem contundente sobre essa gente, intitulada “Vira-lata humano”.
O título da matéria, sumamente objetiva, foi extraído de um poema de um desses seres abandonados pelo mundo, que costuma dormir nas calçadas da Avenida do Estado, em São Paulo, e que se autodenomina Anjo Dias, nome fictício da alguém que, oficialmente, sequer existe, pois não dispõe de documentos, e que diz: “Todos os dias acordo sem saber que dia é./Tenho que comer,/fazer xixi,/arrumar outro lugar para dormir./Acho que é só./Desisti de tentar não causar medo, nojo./Diante de Deus não sou nojento./Diante de tudo, sou corajoso,/mas quem liga pra isso?/To nas ruas feito um bicho./Sou vira-lata humano./Quem liga pra isso?”.
Não se trata, como muitos querem dar a entender, de um caso isolado. É impossível apurar com exatidão quantos são os “homeless” apenas em São Paulo. Há quem estime em cem mil. Outros arriscam-se a contabilizar meio milhão de pessoas. Quem sabe? E a quantidade importa? Um único ser humano que seja, vivendo nestas condições, já é motivo de vergonha para toda a comunidade. E não somente isto.
Para que existem as instituições oficiais de amparo social? Onde tais entidades aplicam suas verbas, se um indivíduo, como no caso de Anjo Dias, quando se vê desempregado, fica na dependência da comida que encontra na lata do lixo para sobreviver? “Quem liga pra isso?”, pergunta o sem-teto.
Certamente, os que estão gastando rios de dinheiro para brincar o carnaval não ligam. Nem os políticos, que usam o tema miséria para discursos carregados de retórica, em vésperas de campanha eleitoral, mas que certamente jamais viram cara a cara um “homeless” urbano.
Na referida matéria, a socióloga Cristina Maria Costa Jorge, diretora-geral da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, constata: “Desde a última década, o perfil do sem-teto vem mudando com uma intensidade muito grande. Até então, ele era aquele indivíduo sem inserção na sociedade que as metrópoles mantinham como uma massa de subempregados. Com o acirramento da crise econômica, o próprio trabalhador, que recebia um ou dois salários-mínimos, foi expulso do seu barraco e passou a se abrigar debaixo dos viadutos”.
Apesar de trágica, há quem extraia poesia dessa situação, a mostrar que o homem, mesmo desprotegido e alijado da sua dignidade, não abre mão da sua percepção. Bom exemplo são estes versos de um sem-teto anônimo: “E quem vem de outro sonho/feliz de cidade/aprende depressa a chamar-te/de realidade/porque és o avesso do avesso/do avesso do avesso...”
(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 22 de fevereiro de 1993)
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