Friday, June 29, 2012

Irrestrita paixão

Pedro J. Bondaczuk

A paixão amorosa é, sempre foi e presumo que sempre será tema central da literatura, não importa em que gênero e nem a época em que a obra for produzida. Não se trata de prerrogativa, por exemplo, do Romantismo, como muitos (erroneamente) pensam e de nenhuma outra escola literária, específica. É atemporal e universal, como é esse próprio arrebatador sentimento. Bem, até aqui, eu não disse nada de novo. Contudo (observo), o óbvio, mesmo que soe (e seja) redundante, deve ser sempre ressaltado, porquanto há muitos (e põe muitos nisso) que não atentam a ele.

Acabei de ler uma novela antiga, antiqüíssima, escrita e publicada em meados do século XVIII (mais especificamente, em 1731, em Amsterdã), abordando devastadora paixão que, ao contrário do desfecho normal das histórias daquele período, não teve final feliz. Muito pelo contrário. Refiro-me ao livro “Manon Lescaut” (cujo título, no original francês é “Histoire du Chevalier dês Grieux et de Manon Lescaut”), de Antoine François Prevost, mais conhecido como Prevost d’Exile ou, mais ainda, como Abade Prevost. O enredo eu já conhecia, da ópera do mesmo nome, do italiano Giácomo Puccini, estreada em 1º de fevereiro de 1893 no Teatro Regio de Turim. Essa circunstância permitiu-me que atentasse a minúcias do livro, aquelas que via de regra fogem à nossa observação quando estamos empenhados em acompanhar a história em si.

Li a novela de Prevost de um só sopro. Vi-me transportado para o cenário desse magnífico drama, descrito com tamanha verdade e paixão, como se o autor tivesse vivido um amor tão avassalador e irrestrito, não fora ele um sacerdote e não estivesse impedido de viver experiências como as que narra, pelo voto de castidade que fez ao ser ordenado. A maneira como o abade descreve as peripécias e desventuras do cavalheiro Des Grieux e da volubilíssima Manon Lescaut multiplica seus méritos literários, já que não se trata de descrição de experiências pessoais, mas são frutos de arguta e competente observação.

A novela (bem como a ópera de Puccini, inspirada nela) é apresentada fora do devido contexto, como se fosse obra exclusiva, o que, de fato, não era. Era o sétimo (e último) volume das “Memoires et aventures d’un homme de qualité qui s’est retire du monde”. Dos seis livros precedentes, ninguém (ou poucos) se dão conta. A história é tão bem narrada, sem que reste o mínimo “fio solto”, que prescinde de qualquer contextualização. Ganhou vida própria e dessa forma consagrou o Abade Prevost como um dos maiores expoentes do Romantismo, tanto na França, quanto no mundo.

A bem da verdade, esse escritor teve passagem obscura na literatura do seu tempo, sem ganhar, por exemplo, a projeção e a reverência de um Victor Hugo, ou de um Honoré de Balzac ou mesmo de uma Madame Stael. Provavelmente permaneceria em rigorosa obscuridade e seria completamente esquecido, como tantos e tantos escritores do seu tempo (e de outro qualquer) não fosse a providencial intervenção de Giácomo Puccini.

Foi a interferência do compositor italiano, mais especificamente de sua ópera baseada na história da avassaladora paixão amorosa, tão bem escrita por Prevost, que tirou o escritor da obscuridade em que estava relegado, e há já mais de um século após sua morte (o abade morreu em 25 de novembro de 1763). Isso confirma uma impressão que sempre tive: a de que uma obra de real valor literário raramente passa batida. Mesmo que na época do seu lançamento seja ignorada pela crítica e pelo público, quase sempre, décadas ou até mesmo séculos depois, acabará caindo em mãos competentes e providenciais, nas de quem findará por lhe fazer justiça.

Foi o que ocorreu com a novela descrevendo a devastadora paixão do jovem Cavalheiro Des Grieux pela bela, mas volúvel e irresponsável Manon Lescaut. Os céticos podem apontar exageros e observar que ninguém suporta tantas traições e volubilidades como suportou o infeliz herói dessa história. Mas... quem pensa assim, tem certeza disso? Provavelmente, se confrontado com idêntica experiência, será o primeiro em igualar (se não em superar) a cega confiança do apaixonado De Grieux. Em minha longa experiência de vida já testemunhei inúmeros casos como os da novela, posto que não com finais tão infelizes. Mas com paixões de idêntica intensidade, quando não até maiores.

Leio, na enciclopédia eletrônica Wikipédia, a avaliação feita por Guy de Maupassant da magnífica personagem criada por Prevost, que peço licença para transcrever: “Eis Manon Lescaut, mais verdadeiramente mulher que todas as outras, ingenuamente descarada, pérfida, amante, perturbadora, espiritual, temível e charmosa. Nessa figura, tão plena de sedução e de instintiva perfídia, o escritor parece ter encarnado tudo que há de mais gentil, de mais envolvente, e de mais infame no ser feminino. Manon é a mulher por inteiro, como ela é, sempre foi e sempre será. No entanto, este pequeno hino em louvor à canalhice não convence todo mundo, da mesma forma poderíamos argumentar que a Virgem Maria representa o ‘eterno feminino’”.

Prevost compôs esta personagem com tamanha perícia, que não há leitor, por mais sisudo e empedernido que seja, que não se apaixone por essa mulher que, apesar de suas traquinices e traições, de fato amava (à sua maneira e profundamente) seu “príncipe encantado”. Tanto que morre em seus braços, após ambos empreenderem desesperada e suicida fuga do selvagem ajuntamento humano da América, ainda inóspita e deserta, para onde haviam sido exilados como pena dos delitos que cometeram na França. No seu derradeiro momento de vida, Manon foi, de fato, somente de Des Grieux, como este em momento algum duvidou que fosse. A paixão... Ah, a paixão! Quem consegue racionalizá-la e explicá-la? Afinal, racionalizada, e explicada, ela deixa de ser paixão! Ou não?


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

2 comments:

Edir Araujo said...

Obriado, Pedro. Estou sempre absorvendo novos conhecimentos - no que tange à Literatura - através de seus textos.

Edir Araujo said...

Corrigindo > Obrigado! Desculpa o erro de digitação.