Pedro J. Bondaczuk
O cultivo idéias não é prerrogativa, apenas, dos sábios, filósofos e escritores. Claro que estes têm necessidade premente disso, já que elas são matérias-primas de suas respectivas ocupações. Trata-se, porém, de necessidade humana, do único animal inteligente da natureza. O mais humilde e iletrado dos homens pode e deve fazê-lo, pois esse é o único recurso que tem para a ascensão mental, espiritual e até social.
Todos podemos ser filósofos. Você estranhou essa afirmação, achando-a incorreta e ousada? Raciocine comigo. Afinal, o que vem a ser, em última análise, a filosofia? Até semanticamente, trata-se do “estudo da vida”. É uma tentativa de entendermos o que somos, onde estamos, porque existimos etc.etc.etc. entre tantas e tantas questões a propósito. Idéias todos nós temos, e em profusão, posto que não raro umas contradizendo outras. O que é necessário é não permitir que nenhuma delas se cristalize, se esclerose e vire dogma que não possa ser contestado ou sequer questionado. Todas, cada uma delas, têm que passar por periódicas reciclagens, ser postas em dúvida, ser submetidas a debate.
Esse processo nem é exclusivo de especialistas, sequer dos razoavelmente letrados. Conheço analfabetos que sequer sabem distinguir as letras, mas que têm visão privilegiada da vida e muito a nos ensinar. Tudo o que fazemos, desde o ato aparentemente mais mecânico, à concepção de grandes obras materiais, artísticas e intelectuais, depende de idéias. O que não podemos, insisto, é deixar de reciclá-las, para que não se cristalizem e não se transformem em dogmas. Podemos (e devemos) dar grandeza e transcendência ao nobre ato de pensar. José Ortega y Gasset advertiu a propósito: “Sem idéias, não podemos viver a um nível humano. Aquilo que fazemos depende delas”. E não depende?
Recorde-se que foram as idéias (não foi a força), que tiraram o homem das cavernas, com a maior revolução já ocorrida em todos os tempos: a descoberta da agricultura. Foi a ciência, e não o comércio, que ampliou os anos de vida desse animal frágil, exposto a um número incontável de doenças, e lhe proporcionou conforto e segurança. Foram as artes, e não as guerras, que deram sentido à vida, com a revelação da beleza. Daí seu permanente cultivo (e contínua reciclagem) serem essenciais ao indivíduo e, por extensão, à espécie.
É pitoresca e bastante feliz a comparação feita pelo filósofo Ludwig Wittgenstein da atividade que o mobiliza. Ele escreveu: “Filosofia é como tentar descobrir o segredo de um cofre: cada pequeno ajuste no mecanismo parece levar a nada. Apenas quando tudo entra no lugar a porta se abre”. Isso requer, todavia, permanente processo de geração de idéias. Muitas se revelarão ridículas logo de cara, das quais devemos nos livrar, não antes de analisá-las sob os mais variados ângulos. Outras parecerão, a princípio, atraentes, mas logo perceberemos que não compõem o verdadeiro “segredo do cofre”. É possível que nesse processo de tentativas e erros, jamais cheguemos ao código que nos permita a “abertura da porta”. Mas, se sequer tentarmos, jamais saberemos.
Há quem entenda que o filósofo é um ser especial, que já nasce conscrito, com esse dom de gerar e de lidar com idéias relativas à vida e aos seus infinitos mistérios. Bobagem. São pessoas como todos nós, com as mesmíssimas necessidades e vulnerabilidades que temos. Precisam comer, beber, se vestir, abrigar-se de intempéries e batalhar pelo pão nosso de cada dia, como cada um de nós. Sentem dores, têm prazeres, são atormentados por dúvidas (aliás em quantidades muito maiores do que quem não lida o tempo todo com idéias), por temores, por angústias e incertezas.
Os filósofos – refiro-me, aqui, aos que são reconhecidos como tal, já que, insisto e reitero, qualquer um de nós pode e até deve “estudar a vida” em todos os seus múltiplos aspectos, sem ter que criar ou decorar os jargões característicos da Filosofia – também se divertem, riem, contam piadas, dizem bobagens, erram etc. como seres humanos normais que são. O que os diferencia é seu empenho maior na geração e análise de idéias.
Blaisé Pascal assim se referiu aos filósofos, tomando como exemplo dois dos mais famosos da Grécia Antiga: “Imagina-se Platão e Aristóteles (...) com enormes vestimentas de pedintes. Eles eram pessoas honestas e, como as demais, riam com seus amigos; e, quando se divertiam escrevendo suas leis e suas Políticas, fizeram-no brincando; era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida; a mais filosófica era viver simples e tranqüilamente. Se escreveram sobre política, era como se fossem regular um hospício de loucos; e se fingiram falar sobre este assunto como grande coisa, é porque sabiam que os loucos a quem falavam pensavam ser reis e imperadores. Eles entraram em seus princípios para moderar sua loucura”.
Viram? Eram pessoas comuns. Ademais, ninguém traz escrito na testa a atividade que exerce, ou seja, a de filósofo, escritor, político ou seja lá o que for. Criar idéias e lidar com elas não é prerrogativa exclusiva de ninguém. Insisto que não é necessário, ou pelo menos não é indispensável, sequer, que se seja letrado ou até mesmo alfabetizado, desde que se tenha aguçada intuição e grande capacidade de compreensão. Claro que o culto e bem informado conta com maiores possibilidades de criar idéias, lidar com elas e entendê-las a caráter. Mas... não é indispensável.
O poeta espanhol (sempre os poetas!), Miguel Unamuno, precisou de escassas palavras para resumir e esclarecer tudo o que tentei dizer, me utilizando de centenas, provavelmente de milhares delas (não contei quantas utilizei nestas reflexões). Disse, em certa ocasião: “Dou o nome de filósofo a um homem que em dado momento tem a oportunidade e a honra de ser a expressão de uma sociedade que se conhece a si mesma em sua profundidade”. Para isso, basta pensar, ser observador, ter intuição e cultivar idéias. E não é?
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