Pedro J. Bondaczuk
A Índia perde, no curto espaço histórico de 36 anos, dois importantes líderes nacionais, com objetivos idênticos, sobrenomes iguais, mas métodos de ação muito diversos. Um, foi o verdadeiro pai da nação indiana, pregador, até o último dia de uma vida exemplar, da não violência, como a única forma do país conquistar a independência e, o principal, de sobreviver após a conquista da sua soberania.
Outra, comandou os destinos da Índia por cerca de 18 anos, em meio às turbulências naturais de uma comunidade nacional composta por centenas de etnias, que fala mais de mil línguas e dialetos diferentes, pratica grande variedade de religiões e cuja renda per capita, para uma população que é a segunda maior do Planeta (de quase um bilhão de habitantes), estacionou nos irrisórios US$ 180 anuais. Onde a taxa de analfabetismo ascende a 65,5%. Onde a mortalidade infantil ainda se constitui num dos seus mais sérios e angustiantes problemas.
Um foi o líder Mohandas Karamanchand Gandhi, chamado por seu povo de “Mahatma”, que significa “grande alma”, por motivos óbvios. Pela intensa preocupação que sempre teve com o ser humano, razão primordial de todos os governos e regimes. Pelo fanático respeito pela vida. Pela crença absoluta e total neste animal nem sempre racional, que é o homem.
A outra, às vezes, foi forçada pelas circunstâncias a lançar mão de meios violentos para manter o país coeso diante de sérios riscos, internos e externos, de desagregação. Foi a terceira integrante de uma notável dinastia, a dos Nehru, a dedicar-se à vida pública (seu avô, Motila, embora nunca fosse chefe de governo, foi um dos primeiros dirigentes do movimento que buscava a independência indiana. Seu pai, Jawaharlal Nehru, sucedeu Gandhi no poder.). Trata-se da primeira-ministra Indira Priayadarshiri Nehru Gandhi.
Ambos ostentaram o mesmo sobrenome, mesmo sem serem parentes. Ambos viveram pelo mesmo ideal de construir uma pátria livre e forte, embora por métodos e estratégias diversos. Ambos acabaram colhidos pelo mesmo destino, vítimas da violência gerada pelas contradições desse Estado tão heterogêneo e problemático.
O primeiro, tombou em 30 de janeiro de 1948, ferido fatalmente pela bala disparada pelo jornalista Nathuran Godse, inocente útil a serviço de traficantes de armas. Ou seja, foi vítima dos mercadores da morte, que tinham na pregação do “Mahatma” sério empecilho para o seu nefasto comércio. Afinal, sem violência, não há necessidade de armas.
A segunda foi assassinada ontem, por seu guarda-costa, membro da seita “sikh”. Pagou com a vida caríssimo tributo de sangue à intolerância religiosa e ao fanatismo cego e tresloucado, que corroem as entranhas da Índia e ameaçam desintegrar o país.
Seu assassinato tratou-se de um ato frio e premeditado de vingança. Indira foi morta por haver ordenado a intervenção do Exército no Templo Dourado de Amristsar, no Punjab, semanas atrás, o local mais sagrado dos sikhs, estranha e exótica religião, que luta pela criação de um Estado secular independente, o “País dos Puros”.
O hino nacional indiano tem um título sugestivo e pitoresco: “Canção da Manhã”. Pois foi no início do dia 31 de outubro de 1984 (cujos algarismos finais, por estranha ironia, são uma inversão do ano da morte do “Mahatma”), que a população soube da sangrenta ocorrência, também nos acordes de uma (sinistra) sinfonia. Foi a produzida por uma fatal rajada de metralhadora, que lhes roubou a líder, a mentora, a guia política, em outro momento sumamente dramático da vida nacional. Foi, pois, também uma “canção da manhã”. Mas não a que gostariam de ouvir e de cantar: a da exaltação nacional. Pode vir a se constituir, isto sim, em um requiém. O do próprio país, ameaçado pelo divisionismo e pela intolerância política e religiosa.
(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 1º de novembro de 1984).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment