Pedro J. Bondaczuk
As intervenções militares de determinado país, ou coligação de países – como a de 1991, liderada pelos Estados Unidos para expulsar as tropas do Iraque do território do Kuwait, que elas haviam invadido em agosto de 1990, ou como a da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, no Kosovo – em áreas de conflito, não são tão providenciais, como muito alienado pensa e muito menos de caráter humanitário, como os interventores apregoam. Invariavelmente, causam sofrimento, destruição e morte principalmente à população civil, indefesa, dos povos a que, suposta (ou alegadamente), dizem “socorrer”. Esta sofre duplamente na carne diante das ações armadas. Sofre nas mãos dos ditadores aos quais as tropas invasoras se propõem a depor. E sofre com as ações de guerra dos seus hipotéticos salvadores.
As pessoas dos países invadidos perdem propriedades, empregos, famílias e, quase sempre, a vida. Todavia, quando os ditadores não são depostos, ninguém pode prever a que ponto pode chegar a loucura, a violência e o desvario desses tiranos, alguns dos quais permanecem décadas no poder, oprimindo e espoliando sua população. Alguns, quando depostos, escapam impunes e fogem para “exílios” de luxo, bancados com os recursos que espoliam das pessoas que tanto oprimiram. Raros, raríssimos são levados às barras dos tribunais para pagar por seus crimes.
Genocídios, como o praticado sob responsabilidade de Josep Stalin, na extinta União Soviética, na década de 1930, em que estimadas 20 milhões de pessoas foram mortas, infelizmente, nem são coisas raras. É possível citar de memória, sem precisar recorrer a nenhuma anotação, dezenas deles, tantos que eles foram (e são). O mais citado é o Holocausto, quando Adolf Hitler adotou o que eufemisticamente batizou de “Solução Final”, que foi o extermínio de pelo menos seis milhões de judeus.
Matanças, como estas, guardadas as devidas proporções, continuam se repetindo, aqui, ali e acolá, sem que esses crimes bárbaros e dantescos sensibilizem a opinião pública internacional. Alguns, é verdade, ganham as manchetes da imprensa mundial. Todavia, não tardam a esgotar o interesse do público. Outros, nem isso conseguem. Quando são noticiados (e raros são), essas informações ocupam inexpressivos pés de páginas de jornais, em notas escondidas e com títulos vagos, que sequer chamam a atenção e atraem leitura.
Vez ou outra, algum escritor talentoso e idealista escreve sobre esses crimes hediondos, muitos dos quais sequer noticiados pela imprensa, ou quando informados, o são apenas de passagem, como se fossem assuntos triviais, de menor importância do que campeonatos de futebol, shows musicais ou fofocas sobre astros e estrelas. Não raro, esses livros transformam-se em best-sellers, despertam o interesse de produtores, que os transformam em filmes de grande bilheteria e em seriados de televisão de muito sucesso. “Business” é a palavra de ordem no mundo globalizado. Todavia, quando isso acontece, quando os massacres ganham, finalmente, divulgação, já é tarde, muito tarde para impedi-los. Já aconteceram e não se pode mais remediar.
Isto ocorreu, por exemplo, apenas em 1990, na Libéria, em Ruanda e na Nigéria, no continente africano. Houve, em anos anteriores ou posteriores massacres de civis na Birmânia, na Índia e em Bangladesh, na Ásia. E pode estar acontecendo agora, neste preciso momento, em algum país qualquer, alhures, do Terceiro ou do Quarto Mundo, sem que a opinião pública mundial sequer saiba. Desde que não haja nenhum interesse político (e principalmente econômico), as potências, certamente, não moverão um só dedo para prevenir ou evitar esses genocídios.
A imprensa (salvo uma ou outra exceção) silenciará a propósito. Ninguém, salvo uma ou outra agência humanitária, do tipo Anistia Internacional, fará qualquer coisa para proteger os direitos humanos, o patrimônio, a integridade física e a vida dos cidadãos, ameaçados por cruéis e sanguinários tiranos. Esses casos podem, ou não, vir à tona, mas quase sempre em decorrência de livros escritos por escritores sem preconceito e sem rabo preso com ninguém. Porém se, ou quando isso acontecer, será tarde demais para salvar milhares, quiçá milhões de vidas. Um exemplo? O massacre perpetrado, na década de 70, pelo Khmer Vermelho, liderado pelo ditador Pol Pot, no Camboja, retratado no filme “Os gritos do silêncio”, sucesso de bilheteria mundo afora.
Quem visita Pnoh Pehn, capital cambojana, invariavelmente ouve a sugestão de que não pode deixar de conhecer o “Museu do Crime Tuol Spleng”. Seu nome já é, por si só, assustador. Todavia, embora se trate de local macabro, é uma das principais atrações turísticas da cidade, Como o mundo é estranho! O museu está situado em um prédio que anteriormente foi uma escola secundária. Hoje, mostra os horrores cometidos pelo Khmer Vermelho em sua passagem pelo poder sem que ninguém, absolutamente ninguém fizesse qualquer coisa para impedir.
O regime de Pol Pot foi responsável, direto ou indireto, pela morte de um quinto da população cambojana que, na época, era de 7,2 milhões de habitantes. Ou seja, assassinou, fria e cruelmente, 1,5 milhão de pessoas do seu próprio povo, sem que nenhuma potência, reitero, interviesse e evitasse esse hediondo morticínio. Intervir para quê? Afinal, o Camboja nem tem petróleo!
O ditador converteu a escola, que atualmente sedia o museu, em prisão, tão logo assumiu o poder, na qual seus partidários humilharam, torturaram, espoliaram e exploraram, de todas as formas possíveis e imagináveis, milhares e milhares de indefesos camponeses, em nome de uma coisa vaga e injustificável que denominaram de “depuração ideológica”. Foi um massacre coletivo vergonhoso e absurdo, mais um dos tantos que ocorreram no século XX, As vítimas não foram somente os já de per si paupérrimos homens do campo. Foram, também, médicos, técnicos de vários níveis, padres, monges budistas, professores, estudantes etc. Em suma, foram todos os que, por uma razão ou outra, não estavam “afinados” com o regime. Às vezes nem isso. Muitos foram trucidados sem nenhum motivo.
Os autores desse hediondo genocídio, para variar, escaparam rigorosamente impunes. Não foram levados a nenhum tipo de tribunal de crimes de guerra, como o de Nuremberg, por exemplo, ou a Corte Internacional de Justiça de Haia. Perderam o poder, é certo, mas obtiveram intoleráveis concessões e salvo-condutos para darem por terminada uma sangrenta guerra civil de onze anos de duração. E o Camboja ficou privado de sua seiva, de sua energia, de sua força criadora, de toda uma geração útil, produtiva e indispensável.
A falta de punição ao Khmer Vermelho não ocorreu, sequer, por carência de provas. Afinal, está lá, em Pnoh Pehn, o tal e sinistro “Museu do Crime Tuol Spleng” a testemunhar as atrocidades para quem quiser ver (se tiver estômago para tal, claro). Ademais, uma das canções mais populares do Camboja fala sobre esse tempo maldito, sombrio, de sangue e terror. Chama-se “Destino de Battambang” e traz, em sua letra, a descrição dos sofrimentos impostos pelo regime de Pol Pot, na província cambojana do mesmo nome, no Norte do país.
Fala, por exemplo, do trabalho escravo de milhares de camponeses, nos alagados e pantanosos arrozais, com jornadas de até dezoito horas diárias, tendo que trabalhar até a exaustão com somente uma ração, uma vez ao dia, de uma sopa rala e nada nutritiva como alimentação. Narra as permanentes e intermináveis sessões de tortura dos que se rebelavam ou cujas forças não permitiam que cumprissem as cotas de produção que lhes eram estipuladas. Lembra dos assassinatos coletivos, apenas para satisfazer a sede de sangue de algum fanático degenerado.
Os políticos podem esquecer atos asquerosos e covardes, como estes. E, via de regra, esquecem. Os estadistas podem fazer vistas grossas a genocídios como o do Camboja, perpetrado pelo Khmer Vermelho. E fazem mesmo se não lhes for vantajoso lembrar ou intervir. Os meios de comunicação podem ignorar mortandades como essa, para não chocar leitores, ouvintes ou telespectadores. Mas o povo tem formas de manter viva na memória a lembrança dos seus entes queridos indefesos, trucidados sob o olhar complacente do mundo. E escritores corajosos e talentosos registram, quando tomam conhecimento, esses acontecimentos sombrios e sangrentos para a posteridade, na esperança (que me parece vã e ilusória) de que seus relatos sirvam pelo menos de alertas para a prevenção de novos e absurdos genocídios. E assim “la nave va...”
Acompanhe-me pelo twitterr: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment