Pedro J. Bondaczuk
Você seria capaz, amigo escritor que me prestigia com sua leitura, de escrever um texto, mesmo que relativamente curto, sem utilizar uma única vez determinada letra do alfabeto? Tente para ver se é fácil. Talvez até consiga, mas dificilmente o que você escrever será rigorosamente coerente e mais, natural, fluente, com jeito de ser espontâneo, sem que o leitor nem mesmo perceba essa sua “idiossincrasia”. Já tentei fazer isso, a título de exercício, mas dei com os burros na água (e me perdoem o jargão popular). O texto saiu truncado, forçado e com vários trechos incoerentes. Parecia conversa de doido.
Todavia, um escritor francês, poucas vezes citado no Brasil – embora considerado um dos mais competentes e respeitados nomes da literatura francesa do pós-Segunda Guerra Mundial – Georges Perec, enfrentou, e venceu com um pé nas costas, esse desafio, que ele próprio se impôs. E não se tratou de nenhum texto de um ou dois parágrafos e nem mesmo de uma crônica um pouco mais extensa (o que já seria memorável façanha). Tratou-se de um livro inteiro, de um romance, intitulado “O desaparecimento”, que publicou em 1969, na França. Nele Perec omitiu por completo a vogal “e”, provavelmente a mais utilizada na língua francesa, sem que sua história mostrasse um único “furo” em sua explanação, a mínima incoerência ou o menor defeito.
Pois bem, é este escritor genial que agora, 40 anos após sua morte (ocorrida em 2 de março de 1982), está sendo, finalmente, apresentado ao público brasileiro. Mas o livro dele que está sendo lançado pela editora Companhia das Letras não é o que citei acima – que, por causa da peculiaridade citada e se essa fosse devidamente explorada pelo marketing, dificilmente deixaria de ser best-seller – mas o de sua estréia, de sua iniciação literária, intitulado “As coisas. Uma história dos anos sessenta”, em que já se percebe a originalidade estilística que iria caracterizar toda a sua posterior e vasta obra.
Todos os que conheceram esse sujeito inquieto, com “fome” insaciável de conhecimento e memória prodigiosa (muitos diriam que “de elefante”), foram unânimes em classificá-lo como gênio. Pudera! O crítico literário do jornal Zero Hora de Porto Alegre, Edu Oliveira, em seus comentários sobre o lançamento da editora Companhia das Letras, apresenta Georges Perec (que nasceu no mesmo mês da sua morte, ou seja, em março, mas no dia 7 do ano de 1936) da seguinte forma: “Ele produziu e dirigiu filmes, foi poeta, dramaturgo, radialista e tradutor. Enumerador, classificador e catalogador obstinado, trabalhou como documentarista do setor de neurofisiologista do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. Amava dicionários e matemática, criou muitas palavras cruzadas para as revistas Le Point e Telerama”. Como se vê, não dá para classificar essa figura, até meio exótica para o meio literário, de outra forma que não de “gênio”.
Só não entendo por que se levou tanto tempo para apresentá-lo ao público brasileiro. Ainda se fosse um escritor, digamos, de “segundo escalão”, seria compreensível, embora imperdoável. Mas torna-se injustificável tamanha demora quando se sabe que se tratou de um dos mais inovadores e geniais homens de letras da Europa. Ah, você duvida, desconfiado leitor? Pois informo-lhe que a obra de Georges Perec ascende a trinta e dois livros, sendo dezesseis deles publicados em vida e outro tanto em caráter póstumo.
Volto a recorrer a Edu Oliveira, do Zero Hora, para informar sobre outras peculiaridades dessa fascinante figura: “Dominava o vocabulário de todas as atividades e profissões, assim como da arte e estilos arquitetônicos. Parecia conhecer o nome de todas as ruas, endereços de cafés, restaurantes, lojas de departamentos, bares, museus e galerias de arte. Sabia as marcas de todos os sapatos, camisas, cigarros e bebidas”. Que mente prodigiosa!
Outra de suas características foi a de não se dedicar exclusivamente à literatura. Tirava sustento de outras atividades, de várias delas. Mas não considerava as letras como mero hobby. Entendia que era um “serviço público” (esse era dos meus!). Disse, certa vez, numa entrevista: “É essencial que um escritor ganhe a vida fora da literatura”.
No Brasil, cá para nós, essa recomendação seria desnecessária, por ser até redundante. Afinal de contas, dá para contar nos dedos, e de apenas uma das mãos, os literatos tupiniquins que conseguem “sobreviver” (já nem digo “viver”) exclusivamente com o rendimento dos seus livros. Sonhador, como sou, tenho esperanças de que um dia esse cenário nefasto para nós, que abraçamos com paixão esta fascinante atividade, se transforme radicalmente, e para melhor, claro. Até lá...
A propósito de Perec, destaco sua adesão (ocorrida em 1967) ao grupo OuLiPo (abreviatura de Oficina de Literatura Potencial), que treinava (penso que ainda treina) escritores para buscarem (e encontrarem) caminhos da originalidade, mas sem descaracterizar a literatura. Essa entidade, como informa Edu Oliveira, “foi criada por Raymond Queneau e François La Lionnais”. Integraram-na, entre outros “cobras” das letras, Ítalo Calvino e Marcel Duchamp.
Não me consta, todavia, que algum deles tenha encarado o desafio que citei no início destas reflexões. Ou seja, o de escrever um livro inteiro sem utilizar, uma única vez, a vogal mais usada em sua língua pátria e, ainda assim, produzir uma obra inteligente, atraente, íntegra, coerente, natural e fluente, como Georges Perec fez. Tipos como ele fascinam-me sobremaneira e, sempre que descubro um, sinto-me tentado a esgotar o assunto. Mas... não o farei. Não, pelo menos, desta vez.
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