Os dois lados da moeda
Pedro J. Bondaczuk
A paixão, sentimento extremo de apego por uma pessoa, entidade ou causa, é algo que sempre me fascinou. Muitos perguntam (e eu também me questiono, amiúde, a propósito) se é um mal que deve ser combatido e erradicado, ou algo desejável e até indispensável para obtermos êxito em qualquer empreitada. Sou de opinião de que tudo depende de controle. Ou seja, de você controlá-la e direcioná-la e não deixar que ela o controle e direcione. É possível isso? Não sei! Entendo que com força de vontade er autodisciplina seja. Mas não posso jurar.
A paixão, em si, é cega, e, a priori, nem é um bem e nem um mal. Escrevi isso, há algum tempo, numa das minhas tantas crônicas. Esse, porém, é um assunto recorrente, daqueles que nunca se esgotam e que sempre apresentam ângulos novos e originais. Da minha parte, não sei viver sem paixão. Sou apaixonado pela mulher que me acompanha há décadas, que me gerou quatro filhos e cuja ausência não concebo. Também sou pela literatura, minha forma de interpretar o mundo e de me comunicar com quem conheço e, principalmente, com quem não conheço e jamais virei a conhecer. Sou apaixonado pela beleza, pela bondade, pela solidariedade e vai por aí afora.
Alguém, em sã consciência, pode afirmar que essas paixões sejam negativas, obsessivas, destruidoras e que devem, portanto, ser descartadas? Creio que não. São frutos de reflexão, de cultivo do intelecto, de experiência de vida. Reitero, pois, que a paixão, em si, não é boa e nem má, aprioristicamente. Cabe-nos direcioná-la corretamente, para que se torne força irresistível e benigna que atue exclusivamente a nosso favor. Sem ela – como ressaltei em uma crônica, escrita há já algum tempo –, nada do que fizermos atingirá a excelência e a perfeição.
Volto à pergunta inicial: é possível controlá-la e direcioná-la e não deixar que ela nos controle e direcione? E reitero a resposta, depois de longa reflexão: sim! Muitos e muitos o fizeram. Michelangelo, por exemplo, estava dominado por intensa paixão ao esculpir a estátua de Moisés, em 1505 – que pode ser apreciada em todo seu esplendor na Igreja San Pietro in Vincoli, em Roma. Essa obra atingiu tamanho grau de perfeição, que seu ilustre autor, num momento de alucinação diante de tanta beleza, teria exclamado: “Parla, Moses!”. De fato, a estátua só falta falar.
Querem outro exemplo do quanto a paixão bem direcionada torna-se aliada na consecução de uma obra, a tal ponto excelente, que imortaliza nossa memória? Cito Dante Alighieri, que punha chispas pelos olhos ao erigir sua “Divina Comédia”, que o consagrou como um dos maiores poetas de todos os tempos. A mesma fúria criativa tomou conta de Beethoven, Tchaikowsky, Rembrandt, Rafael, Velazquez, Monet, Manet, Gauguin, Van Gogh e vai por aí afora. Faça, portanto, o que fizer, coloque paixão em sua obra e ela irá beirar à perfeição. Não acredita? Tente! Mas não perca o controle sobre ela. Não permita que ela o controle. Controle-a!
Em outra crônica, comparei-a a um legítimo cavalo puro-sangue. E ponderei: “Um animal desse tipo, forte, saudável e veloz, pode nos levar com mais rapidez e segurança a qualquer lugar que queiramos. Para isso, porém, é indispensável que seja domado. Se for xucro, nos derrubará da sela antes que sequer consigamos piscar. Para nos ser útil, é indispensável que estabeleçamos com o animal relação de mútua confiança, até mesmo de amizade. A paixão também é assim”.
Essa energia que tende a extrair de nós o melhor ou o pior, dependendo de a controlarmos ou nos deixarmos controlar por ela, pode ser definida, grosso modo, “como um comprometimento irrestrito e absoluto, sem dúvidas ou vacilações, com uma pessoa, uma idéia ou uma causa”. Observei, na sequência, na referida crônica: “Antes de montarmos, portanto, no tal puro-sangue, é indispensável que tenhamos completa certeza da excelência de quem ou do que queremos conquistar. Ou seja, temos que ‘domá-la’. Estabelecida, porém, essa convicção, nada é mais seguro e rápido do que, no dorso do ‘cavalo’ da paixão, galoparmos, livres e confiantes, rumo ao sucesso e à felicidade”.
Essa imagem, a bem da verdade, não é totalmente minha. Foi-me inspirada pelo humanista Daisaku Ikeda, líder budista, que escreveu, em seu livro “Vida um enigma, uma jóia preciosa”: “Controlar a paixão é como correr num cavalo desembestado. Se as rédeas são relaxadas por um instante, o cavaleiro pode ser jogado fora da sela. O certo é dominar e utilizar as forças e energias, de modo que o cavaleiro e o animal se movam como se fossem um só”. Quem não tem essa capacidade de domínio, que evite de se apaixonar (caso isso seja possível, claro. Temo que não seja).
Finalmente, para concluir estas reflexões, peço licença ao paciente leitor para remeter-me a uma terceira crônica minha sobre essa questão. A certa altura escrevi no aludido texto: “O dragão, ser mítico criado num tempo bastante remoto pela imaginação popular, teria a faculdade de expelir jatos de fogo pela boca. Claro que se trata de lenda e que jamais existiu ou poderia existir um animal assim. Em chinês, esse bicho imaginário leva o nome de long e, em japonês, de ryu. Mas o termo por nós utilizado deriva do grego ‘drakon’. Na mitologia chinesa, o dragão foi um dos quatro animais sagrados convocados por Pan Ku, o deus criador, para participarem da criação do mundo”.
O leitor que não leu a referida crônica, pode estar se perguntando, a esta altura: “O que tem a ver o dragão com a paixão?” Calma, me explico. Mas citando outro trecho do texto em questão: “A ele (ao dragão) teria cabido criar a energia do fogo, que destrói, mas permite o renascimento (transformação). Seria, porém, possível o homem expelir chamas do seu corpo? Figurativamente, sim. Quem é dotado do dom do raciocínio, potencializado pela paixão, expele fogo pelos olhos. Ou seja, é convicto do que fala e do que faz e nunca se limita a pensar, mas age, com força, coragem e determinação. É a grande característica dos gigantes da espécie, dínamos do progresso e da civilização”.
A certa altura, dou o devido crédito a essa idéia e escrevo: “Paulo Mendes Campos tratou com perícia do tema, na crônica ‘De um caderno: três escritores soviéticos’, publicada na revista Manchete, em 1967. Escreve, a propósito: ‘O dom do raciocínio quando misturado à dádiva da paixão faz com que as criaturas ponham fogo pelos olhos, como se uma coisa fizesse a outra arder indefinidamente. Lógica e paixão fazem um incêndio na alma. Pascal também devia botar fogo pelos olhos. E Spinoza’. E poderíamos aduzir uma lista enorme de figuras dotadas dessas características que se tornaram ‘imortais’ na memória dos povos”. Viram como uma característica, tida e havida como perigosa e que, supostamente, devamos evitar, pode se transformar em irresistível força que nos conduza ao sucesso? Por isso, esse tema me fascina tanto.
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