Tintas do acaso
Pedro J.
Bondaczuk
A história, geralmente, é escrita com as tintas do acaso,
do fortuito, do não-programado. Isso acontece com pelo menos aqueles fatos que
realmente são dignos de registro, por trazerem enormes mudanças, benéficas ou
catastróficas, alterando o destino dos povos e até o curso das civilizações.
Dentro de mais dois dias, num gélido país insular,
aquecido por milhares de geisers que a intervalos de alguns minutos jorram como
se fossem mágicos chafarizes suas águas aquecidas a alguns metros de altura, os
representantes dos dois povos mais poderosos da Terra estarão, mais uma vez,
frente a frente. Por alguns minutos, certamente, ambos vão abstrair-se de suas
funções e responsabilidades e perceber que no essencial são exatamente iguais.
É verdade que a língua que falam é um tanto diferente. Os
sons de uma soam exóticos aos ouvidos acostumados, desde a infância, a ouvir
somente a outra. As crenças políticas, filosóficas, econômicas e algumas outras
mais também apresentarão diversidades. Mas esses homens, representando dois
agrupamentos humanos separados geograficamente apenas por um estreito, o de
Behring, seriam tão diferentes assim, a ponto de parecerem, um ao outro, seres
de outros planetas?
Não haverá valores que lhes sejam comuns? Um crê em Deus
(pelo menos apregoa crer e faz parte de uma igreja), mas o outro entende que
“religião é o ópio do povo”. Em contrapartida, o que vem das bandas do Oriente
deifica uma entidade monstruosa, onipresente na vida de todo mundo, denominada
Estado, da qual cada indivíduo não passaria de mera peça.
O do Ocidente afirma acreditar na liberdade. Mas o sistema
que ajuda a consolidar não passa de uma contrafacção do monstro oriental, posto
que através de uma forma mais sutil de controle dos cidadãos, por meio de
poderosíssimos cartéis transnacionais.
O que, pois, haveria de comum entre estes dois homens para
impedir que conduzam os respectivos blocos que comandam, com os povos que os
compõem, ao confronto fatal, que mais dia menos dia irá ocorrer, a menos que se
coloque um pé no freio, e com urgência, na vertiginosa corrida armamentista
nuclear?
O amor às suas respectivas pátrias! Às crianças de seus
países! Às tradições de seus antepassados! Às suas esposas! À sucessão das
gerações! À perpetuação dessa aventura maravilhosa, única e sempre fascinante
de viver!
Daqui a dois dias, quando o presidente norte-americano
Ronald Reagan chegar ao Hotel Solna de Reykjavik, apertar as mãos do
secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev,
mirar em seus olhos e sorrir para ele, verá que tem diante de si não um demônio
marxista, chio de malícia, desejoso, apenas, de escravizar a humanidade
inteira. Talvez seja, no máximo, um homem equivocado em seus conceitos
ideológicos, quem sabe. O mesmo ocorrerá com o líder do Cremlin, que se
aperceberá estar diante de um ser humano dotado de grande bom-senso e muita
sensibilidade.
É verdade que acontecimentos banais, como a derrubado do
avião norte-americano (com tripulantes desse país, vejam só!), na Nicarágua, no
domingo, podem mudar os rumos dessa conversa. Por isso é que eu disse, no
início destas considerações, que as tintas do acaso é que escrevem a história.
Só que o episódio registrado no fim de semana na América
Central, de tão desastrado, não tem nada de casual. Ocorreu próximo demais do
encontro de Reykjavik para ser mera coincidência. O estranho pedido de asilo
político de um cientista norte-americano em Moscou, com a conseqüente
repercussão, idem.
E sabe-se quantas maquinações mais estão sendo feitas,
neste momento, pela CIA, KGB e tantas outras entidades para as quais a palavra
paz não é um refrigério, mas um palavrão. Que tal se elas saíssem perdendo pelo
menos uma vez, para o bem de todos nós?!
(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 9
de outubro de 1986).
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